O relatório “O fim do paraíso do gado: Como os desvios de terras para explorações pecuárias minou a segurança alimentar nos Gambos” redigido pela Amnistia Internacional, foi divulgado, esta terça-feira, analisa a crise alimentar que foi impulsionada pela pecuária comercial e a seca extrema, apontando também as consequências que se têm agravado nas últimas duas décadas após a guerra civil. Para além de alertar para a falta de alimento, o relatório denuncia também a falta de assistência ou compensação por parte do governo angolano.
No extremo sul da província da Huíla, no Sul de Angola, encontra-se o município dos Gambos, lar de Tunda e Chimbolela, os costumeiros campos de pasto comuns aos pastores da região.
A pesquisa da Amnistia Internacional descobriu que o leite é o produto mais importante para sustentar a subsistência na região dos Gambos. Tal como com o resto dos angolanos do Sul, esta comunidade é conhecida pelos seus criadores de gado tradicionais, também chamados pastoralistas, e faz parte da região leiteira.
Estes pastores contaram aos investigadores sobre a falta de pastagens suficientes após a introdução da pecuária comercial. Como resultado, grandes extensões de terra foram vedadas, levando a que o gado passasse fome, produzisse menos leite, e a que as famílias consumissem menos leite, o que por sua vez resultou em fome e desnutrição.
Com a falta de leite para consumo doméstico, tanto os adultos como as crianças aparentavam estar fisicamente magros, adoentados, fracos e cansados. À Amnistia contaram que agora comiam lombi (folhas selvagens) como a sua principal fonte de alimento. Muitas pessoas contaram que sofrem de vómitos e diarreia e contraíram também doenças de pele, tais como a sarna, devido à escassez de água e às más condições de higiene.
“Para uma vaca produzir leite, precisa de comer muita erva de qualidade, erva com boas vitaminas. Sem erva de qualidade suficiente, é impossível produzir leite suficiente para bezerros e humanos. Como podem ver, estão magras. Têm fome. Isso significa que as nossas crianças já não bebem leite suficiente. As crianças por aqui costumavam ser gordas, reluzentes e saudáveis. Tinham peles bonitas e brilhantes. Agora são magras e baças. É de partir o coração. Já não há leite suficiente. Por isso, nós, os adultos, desistimos de beber leite para que as crianças ainda possam ter leite. Como podem ver, nós não parecemos saudáveis e fortes como costumávamos ser. Nós somos magros e fracos”, contou um pastor à Amnistia Internacional.
Governo angolano fecha os olhos ao crescimento dos fazendeiros comerciais
Desde o final da guerra civil, em 2002, as famílias pecuárias viram os produtores comerciais de gado a ocuparem a Tunda dos Gambos e Vale do Chimbolela sem qualquer processo para procurar o seu consentimento livre, prévio e informado. Segundo eles, todos os fazendeiros comerciais de gado seguiram um método semelhante de operação. Chegaram sem anúncio, reclamaram as terras e vedaram o espaço sem consulta, compensação e avaliação do impacto ambiental.
De acordo com a Amnistia, os criadores comerciais de gado apropriaram-se de 67% das terras de pastagem comuns naquela região, nomeadamente as melhores terras de pastagem comunitárias, que tinham historicamente mitigado o impacto da seca entre os pastores da região.
Consequentemente, as famílias pastoralistas ficaram com terras insuficientes e improdutivas para as suas colheitas e para alimentar o gado, prejudicando a produção de leite, queijo, iogurte e carne, o seu principal meio de subsistência.
Ambas as regiões são terras comunitárias rurais que pastoralistas do Sul de Angola – incluindo as províncias do Cunene, da Huíla e do Namibe – têm usado durante séculos como pastos comuns. No entanto, apesar deste facto, o governo angolano permitiu que os criadores comerciais de gado ocupassem a Tunda e Vale do Chimbolela sem qualquer forma de compensação, violando claramente a legislação angolana. Nos termos da constituição do país, devem ter lugar consultas plenas com as comunidades afetadas antes de as terras lhes serem retiradas. Contudo, o governo angolano permitiu que os criadores de gado comerciais ocupar pastagens das comunidades pastoralistas sem qualquer consulta.
“A ocupação [apropriação] da Tunda dos Gambos e do Chimbolela começou no final dos anos 1990. Após a guerra, em 2002, a ocupação [apropriação] intensificou-se, e vimos cada vez mais fazendeiros chegarem e ocuparem, cada vez mais terra de pastagem vedada. Todos estes não falaram connosco, de todo. Simplesmente vieram e colocaram cercas. Não fomos consultados; como se não estivéssemos ali. Para eles, nós somos invisíveis. Não somos nada”, contou um agricultor à Amnistia.
Amnistia pede ação legal e inquérito aos ocupantes
A Amnistia Internacional deixou clara a necessidade de apelar ao governo angolano para que tome medidas imediatas para resolver a questão da insegurança alimentar nos Gambos e que fazer reparações perto das comunidades afectadas.
Para além disso alerta para a urgência em conduzir um inquérito para investigar como grandes partes da Tunda dos Gambos e do Vale do Chimbolela foram concedidas para a pecuária comercial desde o fim da guerra civil, em 2002, sem nenhuma condição legal. “O governo angolano permitiu que os fazendeiros retirassem aos/às pastoralistas as suas terras de pastoreio sem consentimento livre, prévio e informado”, conclui no documento oficial da organização.