Fonte: Brasil de Fato
Foto: Arquivo pessoal; " Eu acho que, em relação ao acesso à terra e à água, temos que continuar a fazer o que já fazíamos nos governos anteriores, que, aliás, não avançaram muito na questão da terra, por exemplo"
Autora: Viviane Brochardt
Mossoró, 06 de Dezembro de 2016 às 12:13
Entrevista com Carlos Eduardo Leite
O IX EnconASA reuniu em Mossoró/RN, de 22 a 25 de novembro, representantes de diversos estados que integram a Articulação Semiárido Brasileiro (ASA) e também inúmeros parceiros, a exemplo da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), para discutir estratégias de resistência e enfrentamento dos povos e comunidades tradicionais às ameaças a seus territórios e refletir sobre o atual cenário político-econômico brasileiro e seus desdobramentos na políticas públicas voltadas para o Semiárido. Acesso à água, à terra e comercialização de alimentos da agricultura familiar estiveram no centro da discussão. A agroecologia foi apontada como um caminho que valoriza as práticas e culturas locais na produção de alimentos e fortalece as relações sociais das populações do campo. Para falar sobre isso, entrevistamos Carlos Eduardo Leite (Caê), integrante do núcleo executivo da ANA, membro do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) e coordenador da ONG baiana Sasop.
Como, a partir do governo Temer, passam a ser desenvolvidas as diversas políticas públicas voltadas para o campo, como acesso à água, à terra, por exemplo?
Eu acho que, em relação ao acesso à terra e à água, temos que continuar a fazer o que já fazíamos nos governos anteriores, que, aliás, não avançaram muito na questão da terra, por exemplo. Precisamos valorizar as comunidades tradicionais, as populações indígenas, os movimentos fundo de pasto aqui do Nordeste, especificamente na Bahia, que são processos coletivos de acesso e uso da terra. Precisamos fortalecer as lutas desses povos pelo direito aos seus territórios ancestrais. O lema é, portanto, ocupar, resistir e produzir, que é um lema antigo dos movimentos de luta pela terra, por reforma agrária. Teremos que disputar o direito pelo acesso à terra.
Quanto às políticas publicas de acesso à água, estas podem ser muito comprometidas se não forem executadas de forma descentralizada e em parceria com as organizações da sociedade civil, como vinha sendo feito nos governos anteriores. As tecnologias sociais para captação e armazenamento de água, por exemplo, que são as pequenas tecnologias que dão autonomia às famílias agricultoras, correm o risco de serem substituídas ou reduzidas em prol das grandes obras hídricas, que ao longo de diversos anos mostraram que só serviam para alimentar a indústria da seca. Se isso acontecer, será um grande retrocesso. Nesse sentido, nos preocupa a decisão desse atual governo de retomar o velho Dnocs (Departamento Nacional de Obras Contra a Seca) como órgão oficial para desenvolvimentos das políticas hídricas no Semiárido. Isso significa apostar nas grandes obras e nas ações emergenciais e deixar de entender e de afirmar a perspectiva de convivência com o Semiárido, que a sociedade já reconhece e que demonstrou, ao longo da última década, sua viabilidade.
Que outras políticas públicas estão sob ameaça?
Não podemos esquecer também de falar do que está acontecendo agora com o Programa de Aquisição de Alimentos, o PAA, que é de grande importância para agricultoras e agricultores familiares, camponeses, extrativista comercializarem seus produtos e garantirem alimentos para as populações em insegurança alimentar. Um programa que nasceu das conferências de Segurança Alimentar e Nutricional e se enraizou nos diferentes rincões deste País por conter na sua essência uma forte relação entre quem produz e quem consome alimentos e, assim, passou a fortalecer a economia local e a valorizar a diversidade de produtos da agricultura familiar e as culturas alimentares locais. Com o atual governo, corremos o risco de burocratizarão crescente que,praticamente, decreta a morte desse Programa. Isso porque o Tribunal de Contas da União (TCU) teve um novo entendimento sobre os alimentos processados provenientes da agricultura familiar, uma coisa totalmente descabida.
O entendimento do TCU é que os alimentos beneficiados ou processados pela agricultura familiar, como biscoitos e pães, por exemplo, só sejam adquiridos pelo Programa se tiverem todos os ingredientes produzidos pelos agricultores. Isso inviabiliza a compra pelo PAA desses alimentos beneficiados, o que é um absurdo. Esses produtos são os de maior valor agregado gerando mais renda para os agricultores, especialmente para as mulheres, maiores fornecedoras de alimentos beneficiados para o PAA.
Se aprovada, a proposta de acórdão do TCU imporá à Conab (Companhia Nacional de Abastecimento) a adoção de regras que, na ponta, excluirão uma parcela significativa de agricultores e agricultoras familiares, que deixarão de fornecer produtos beneficiados ou processados para o Programa.
Ou seja, se tínhamos uma burocratização do PAA no governo passado, isso piorou ainda mais com esse governo. Além disso, as políticas chegam menos às comunidades e há uma diminuição na oferta de alimentos saudáveis para as populações urbanas. O acórdão do TCU foi adiado por um mês e nós, da sociedade civil, temos que fazer muita pressão nas redes sociais, no Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) e na Comissão Nacional de Agroecologia (Cnapo) para que possamos reverter esse quadro.
Qual a avaliação que se faz desses projetos de caráter econômico, cuja comercialização dos alimentos está sob a gestão das mulheres?
Para se ter uma ideia do trabalho cada vez mais qualificado das mulheres, posso citar uma conversa que tive, aqui mesmo no Enconasa, com a Fundação Banco do Brasil (FBB). A Fundação reconhece que os projetos de caráter econômico mais bem sucedidos apoiadas pela FBB estão sob a gestão de mulheres. A partir do momento que você diminui o aceso a empreendimentos econômicos e solidários, a mercados, você está diminuindo a participação das mulheres no processo produtivo e tirando um direto que vinha cada vez mais sendo conquistado por elas. É o que pode acontecer se esse entendimento do TCU passar a valer daqui a um mês. Sem contar que houve, ao longo dos anos, todo um esforço de adequação a normas, formalização das organizações para participar do mercado institucional, ampliação da capacidade produtiva para atender à demanda por alimentos saudáveis, enfim, um acúmulo que pode ser jogado fora. Sem contar com o impacto direto na vida das mulheres que beneficiam e comercializam seus alimentos, que terão sua renda reduzida. Como, geralmente, as mulheres investem sua renda em casa, na família, diminuir a renda das mulheres é diminuir a qualidade de vida das crianças, dos filhos, de toda a família.
O protagonismo das mulheres e das juventudes rurais, o direito à comunicação e o direito aos territórios dos povos e comunidades tradicionais foram assuntos bastante debatidos neste encontro. A que você atribui a emergência desses temas?
Uma pergunta que tenho ouvido aqui no encontro é “como construímos uma comunicação para fazer valer a consciência coletiva de que há uma saída para o Semiárido, que é a convivência? ”. A comunicação passa a ser uma grande estratégia tanto de resistência como de transformação da realidade do Semiárido e também, nessa conjuntura que nós estamos, onde as nossas narrativas precisam ser afirmadas em contraposição à narrativa dessa elite dominante, tanto política quanto do capital financeiro. A comunicação emerge da necessidade de uma comunicação plural e democrática, no Semiárido e em todo o Brasil. Sem uma comunicação que dê voz aos movimentos populares, como podemos fortalecer a democracia no País e revidar aos seguidos golpes que estamos sofrendo? Como podemos denunciar as ameaças às políticas públicas, que são conquistas de décadas de luta? Precisamos denunciar o desmantelamento do Estado, os golpes aos direitos sociais e à Constituição Federal. A comunicação é, portanto, um direito que precisamos exercer.
O protagonismo de jovens e mulheres também foi colocado aqui exaustivamente, assim como o reconhecimento da participação de comunidades e povos tradicionais e indígenas e as questões territoriais, que foram discutidos com bastante força. Mas isso não surge de uma hora para outra, vem sendo amadurecido nos estados, nas comunidades. Se chega com força ao encontro nacional da ASA é porque já tem raízes desenvolvidas nas localidades.
Para nós, da ANA - que é a Articulação Nacional de Agroecologia, da qual a ASA faz parte – entendemos que essas relações sociais, essa valorização dos territórios e seus povos, isso está na centralidade da proposta de agroecologia que a ANA trabalha e defende. Perceber como esse tema está sendo trabalhado aqui nesse encontro, que tem um caráter regional, focado no Semiárido, nos aponta a necessidade de estarmos, enquanto Articulação Nacional de Agroecologia, mais presente nos territórios construindo a convivência com o Semiárido.
Qual a relação entre agroecologia e convivência com o Semiárido?
Por muito tempo a ASA focou muito nas tecnologias, nas cisternas, mas a gente vem percebendo, cada vez mais, tanto na fala dos agricultores e agricultoras quanto na fala da direção da ASA, uma abordagem que traz a agroecologia como concepção de convivência com o Semiárido. A agroecologia já não é mais uma coisa estranha à convivência com o Semiárido, é uma abordagem que constrói a convivência com o Semiárido, isso ficou muito claro aqui nesse encontro. Por outro lado, para nós da ANA, isso ajuda muito a gente a olhar de forma mais sistêmica a perspectiva de convivência.
Percebo também que a ASA começou a internalizar algumas abordagens agroecológicas, como a discussão da biodiversidade e dos recursos genéticos e, de forma mais concreta, das sementes. Considerando a organização interna da ASA, seus núcleos de base, tenho certeza que podemos fortalecer as experiências comunitárias de produção de sementes. As organizações da ASA sempre fizeram isso e, mais recentemente, a ASA vem desenvolvendo um projeto em rede de resgate de sementes nativas, crioulas, da paixão, enfim, das sementes guardadas de geração para geração pelos agricultores e agricultoras familiares e que guardam uma grande variedade e riqueza genética.
Pensando nacionalmente, quais os desafios para a ANA?
A ANA, por ser uma articulação nacional que agrega organizações, redes e movimentos que atuam em diversas partes do País com alcances variados - do local, passando pelo regional ao nacional - valoriza as distintas formas de organização social, os variados atores coletivos. Entendemos que quanto mais fortalecidas estiverem essas redes regionais, a exemplo da ASA, mais fortalecida estará a agroecologia. Temos a compreensão que precisamos intensificar o diálogo com essas articulações regionais, com as articulações estaduais. Hoje, a nossa perspectiva de intervenção política está muito mais nos estados e nos municípios. Também percebemos que o nosso olhar pode estar mais atento à construção de políticas públicas, inclusive políticas estaduais de agroecologia em algumas unidades da federação. A partir dessas questões, para enfrentar o atual cenário brasileiro, é importante estabelecermos sinergia entre temas mobilizadores e estratégicos e construirmos pontes entre os atores coletivos da ANA, que têm sua autonomia. A concepção de nenhum direito a menos traz em si a necessidade de continuarmos avançando, de não retroagirmos.
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