Por Nieves Zúñiga, revisado por Guillermo Neiman, pesquisador principal do CONICET, professor da Universidade de Buenos Aires e da FLACSO Argentina
A Argentina é o oitavo maior país do mundo com uma área continental que cobre mais de 2,7 milhões de km21. Situada na América do Sul, fazendo fronteira com o Chile, Bolívia, Paraguai, Brasil e Uruguai, tem uma população de 44 milhões de pessoas, das quais 90% vivem em áreas urbanas2. Após sua independência da Espanha em 1816 e uma guerra civil que durou até 1861, o desenvolvimento da Argentina como nação foi muito influenciado por ondas de imigração européia, principalmente da Itália e da Espanha. Estima-se que 90% da população argentina tem ascendência européia e cerca de 60% da população é de origem italiana3.
As aquisições de terras em grande escala são uma prática estendida na Argentina. Elas representam 29,6% dos negócios de terras na América Latina e 6,8% a nível global.
Argentina, Humahuaca, foto de Francoise Gaujour, 2015, licença CC BY-NC-ND 2.0
A afluência da população estrangeira foi promovida por políticas de assentamento de terras com o objetivo de povoar o vasto território argentino. Este processo envolveu a distribuição de terras estatais, bem como a ocupação de terras de povos indígenas.
A Argentina é considerada uma economia emergente média, mas seu desempenho econômico tem sido instável e tem sido afetada pela alta inflação - a inflação anual em 2011 foi de 12,67% e em 2021 deve chegar a cerca de 50%)4. Além disso, a dívida argentina aumentou significativamente nos últimos anos, passando de cerca de 154.000 bilhões de dólares em 2005 para mais de 335.000 bilhões de dólares em 20215.
Esta situação econômica e uma política aberta aos investimentos estrangeiros determinaram a governança da terra no país, o que favoreceu aquisições e investimentos em larga escala com consequências significativas para os pequenos(as) produtores(as) e para o meio ambiente, como o desmatamento. Os investimentos nacionais seguiram as mesmas tendências e tiveram consequências semelhantes.
Legislação e regulamentação de terras
A Constituição de 1994 estabelece que todos os habitantes da Nação têm o direito de usar e dispor de seus bens (Artigo 14). Também estabelece que a propriedade é inviolável, e nenhum habitante da Nação pode ser privado dela, exceto em virtude de um julgamento baseado na lei, e que a expropriação por razões de utilidade pública deve ser qualificada por lei e previamente compensada (Artigo 17)6.
A governança fundiária na Argentina foi afetada por dois aspectos: grandes extensões de terra e a legislação para povoar o território, o que foi facilitado no início do século XX pela expansão da rede ferroviária e, portanto, a possibilidade de alcançar áreas inexploradas7. Em 1940, a Lei de Colonização nº 12.636 incluiu um plano agrário para povoar o interior do país, disponibilizando terras de propriedade do Estado e de bancos públicos para serem colonizadas.
Este princípio continua no artigo 25 da Constituição de 1994, que estabelece que o governo deve incentivar a imigração europeia e não pode restringir, limitar ou impor qualquer imposto sobre a entrada no território argentino de estrangeiros cujo objetivo seja trabalhar a terra, melhorar as indústrias e introduzir e ensinar ciência e as artes.
Entretanto, uma percepção posterior da terra como um recurso escasso e não renovável levou, em 2011, a estabelecer legalmente o limite de propriedade ou posse de terras rurais por estrangeiros a 15% (Artigo 8) através da Lei de Terras No. 26.7378. Com a intenção de não comprometer o desenvolvimento, a soberania nacional e a propriedade do povo argentino sobre suas terras, a lei nomeia o Ministério da Justiça e dos Direitos Humanos para fazer cumprir a lei e estabelecer um registro de terras. De acordo com os dados do registro, em 2015, 6,09% das terras rurais pertenciam a estrangeiros. As províncias com maior percentual de terras rurais em mãos estrangeiras eram Misiones (13.,88%), Corrientes (13.,86%), Catamarca (12,09%), Salta (11,80%) e Santa Cruz (10,84%)9.
A regulamentação de terras urbanas pelo Estado tem sido até recentemente escassa e atribuída às províncias e municípios10. Em 2020, o Plano Nacional de Terras Urbanas foi criado através da Resolução Nº 19/2020 do Ministério do Desenvolvimento Territorial e Habitat11. O Plano visa aumentar a oferta de terras urbanizadas que são acessíveis a diferentes setores sociais e suas respectivas capacidades de pagamento, sendo adequadas para programas habitacionais12.
Classificações de posse de terra
Na Argentina, existem várias formas de posse de terra: terra estatal, propriedade privada, arrendamento, partilha, comodato, concessão, contrato incidental, ocupação com permissão, ocupação de fato, sucessão indivisa, usufruto e terra comunal indígena, entre outras13. A propriedade privada é a principal forma de posse que possui 69% da terra, 19% é arrendada, 3% é sucessão indivisa, 3% é ocupada com permissão e 1% é ocupada de fato14. Segundo dados do Censo Agropecuário de 2018, 96% das terras na Argentina são privadas, 3% são terras estatais e 1% deve ser determinada15. A maioria das terras estatais (65%) está localizada na região da Patagônia16.
Há também "explorações agrícolas sem limites definidos", que segundo o Censo de 2018 são aproximadamente 22.00017, significativamente menos do que em 2002, quando eram 36.00018. As províncias com o maior número de parcelas sob esta denominação são Santiago del Estero, Jujuy e Salta.
A posse da terra na Argentina foi significativamente afetada pela reforma econômica e pelas políticas de ajuste estrutural nos anos 90. Essas políticas tiveram um impacto significativo sobre os pequenos(as) agricultores(as), que não tinham a capacidade de enfrentar o aumento dos custos de produção, impostos mais altos, a necessidade de incorporar tecnologia e a eliminação de subsídios. Isto, juntamente com arrendamentos e condições mais flexíveis para contratos únicos, resultou num aumento do número de arrendamentos e contratos incidentais19, entre 1988 e 2002, bem como numa redução significativa dos pequenos(as) fazendeiros(as)20.
A regulamentação de algumas dessas formas de propriedade não está isenta de desafios. Em 2013, foi criado o Programa Nacional de Titulação e Arraigo Rural para contribuir para a redução da precariedade na forma de ocupação e posse de terras rurais21. This Este Programa trata de formas de posse que precisam ser regulamentadas, tais como:
- Ocupação de terras estatais: a ocupação pode ser sem licença (não estão registradas como ocupantes, mas podem ter desenvolvido sua atividade naquela terra por gerações) ou com licença (pagam uma taxa ao governo local para usar a terra, geralmente mais barata do que o preço de mercado). Dentro desta categoria, há também lotes para venda (as e os ocupantes assinaram um contrato de adjudicação para venda com o governo local até que lhes seja concedido o título final após o cumprimento das normas locais).
- Ocupação de terras privadas: vivem e trabalham em terras registradas sob o nome de outra pessoa. Devido ao tempo e à inação do proprietário(a) oficial, eles podem exercer direitos de usurpação ou prescrição aquisitiva.
- Terra comunal: derivam de formas de posse originadas na época colonial e apresentam desafios devido a sua delimitação muitas vezes imprecisa.
- Meação precária: produtores que não possuem terras e estão envolvidos em acordos assimétricos.
- Comunidades indígenas: os desafios ocorrem quando não se trata da comunidade indígena, mas de famílias de origem indígena com práticas agrícolas similares às dos não indígenas.
Desde a criação do Programa até setembro de 2020, o governo federal e as províncias assinaram 7 acordos, dos quais 6 foram assinados com cooperativas de apoio, e foram registradas 1025 pessoas22.
O registro de terras na Argentina está muito focado no controle da estrangeirização de terras rurais, que é administrado pelo Registro Nacional de Terras Rurais. Em 2018, parte do processo de registro poderia ser feito online, tornando-o mais rápido e barato23. Entre os procedimentos que podem ser realizados on-line estão: declaração juramentada de terras rurais adquiridas antes da Lei 26.737 e não declaradas (esta é dirigida aos proprietários(as) estrangeiros(as) que adquiriram suas terras antes de 2011 e que não seguiram a lei referente ao prazo de 180 dias para registrá-las); aquisição de terras rurais com base no princípio dos direitos adquiridos; notificação obrigatória do vendedor(a) estrangeiro(a) transferindo terras para uma pessoa não contemplada pela lei.
De acordo com o Índice de Transformação BTI 2020, a aplicação da regulamentação sobre direitos de propriedade e de aquisição, benefícios, uso e venda de propriedade na Argentina é afetada negativamente por deficiências no sistema judicial e administrativo, interferência política e corrupção24.
Questões de direitos fundiários comunitários
Na Argentina, 2,4% da população se auto-identificam como indígenas25. A Constituição de 1994 reconheceu a personalidade jurídica das comunidades indígenas, bem como a posse e propriedade comunal das terras que tradicionalmente ocupam. Em nível internacional, a Argentina ratificou a Convenção 169 da OIT sobre os direitos dos povos indígenas e tribais em 2000 e votou a favor da Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas.
Vigília de mais de 20 comunidades indígenas para solicitar uma audiência com Cristina Fernandez para o reconhecimento de suas terras. Foto de Santiago Sito, 2013, licença CC BY-NC-ND 2.0
Em 1985, a Lei 23.302 sobre Política Indigenista e Apoio às Comunidades Indígenas criou o Instituto Nacional de Assuntos Indígenas (INAI) com participação indígena (Artigo 5), e regulamenta a adjudicação de terras aos povos indígenas (Artigo 7-13). A Lei determina que a terra será destinada gratuitamente, os beneficiários(as) serão isentos de impostos nacionais e livres de encargos administrativos (Artigo 9), a terra adjudicada é impenhorável e inexequível (Artigo 11) e a terra adjudicada deve ser localizada no local onde a comunidade vive (Artigo 7)26.
Em 2006, a Lei nº 26160 sobre o Levantamento Territorial das Comunidades Indígenas foi criada em caráter emergencial, devido à situação precária das comunidades indígenas. Em 2005, houve vários confrontos entre os povos indígenas e os governos locais, resultando em despejos violentos, repressão policial, perseguição e assédio judicial em resposta às exigências indígenas de respeito a seus direitos27. A lei foi criada por 4 anos, mas posteriormente prorrogada em 2009 pela Lei 26.554, em 2013 pela Lei 26.894 e em 2017 pela Lei 27.400 até novembro de 2021. Esta lei suspendeu a execução de sentenças, atos processuais ou administrativos cuja finalidade é o despejo ou desocupação das terras ocupadas pelos povos indígenas; e ordena o levantamento das comunidades indígenas e das terras ocupadas por elas na atualidade, de forma tradicional e pública28. O levantamento não é um censo, e não dá títulos de terra. Dados da LandMark mostram que 5,5% da área total de terras argentinas são terras indígenas e comunitárias, das quais 2,9% foram reconhecidas pelo governo.
Apesar dessas regulamentações, as disputas sobre os direitos territoriais indígenas não garantidos pelo Estado continuaram aumentando em 2020, especialmente afetadas pela falta de uma lei sobre a propriedade comunitária indígena e pelo avanço dos interesses econômicos e das indústrias extrativas em torno dos territórios indígenas, que muitas vezes acabam em violência29. Exemplos desses conflitos ocorreram na comunidade Mapu Lafken Winkul na província de Rio Negro, e na comunidade Mapuche de Buenuelo também em Rio Negro.
Tendências de uso do solo
A Argentina tem uma área terrestre de 2.736.690 km2, a maior parte (98%) é terra rural e 2% é terra urbana, uma proporção que não mudou de 1990 a 201030. Em 2010, 91% da população vivia em áreas urbanas31. O Censo Agrícola de 2018 revela que 82% da terra é para uso agrícola e florestal, 17% é para uso não agrícola, e 1% tem uso indefinido.
Nos últimos 20 anos, tem havido uma expansão progressiva da agricultura e da pecuária intensiva, levando a um problema de desmatamento. Dados do Banco Mundial mostram que de 1990 a 2010 as terras agrícolas aumentaram de 46,6% para 53,8%; ao mesmo tempo, as terras florestais diminuíram de 12,8% em 1990 para 11% em 201032. De acordo com o Greenpeace, nas últimas três décadas, 8 milhões de hectares de florestas foram perdidos. As províncias de Salta, Santiago del Estero, Chaco e Formosa foram especialmente afetadas, onde 80% do desmatamento ocorreu33. Os problemas decorrentes desta prática são inundações, deslocamento de camponeses(as) e comunidades indígenas, conflitos fundiários, desaparecimento de espécies ameaçadas de extinção e a propagação de doenças.
El Chaco: problemas de conservação, foto de Christian Ostrosky, 2007, licença CC BY-NC-ND 2.0
Para regular esta situação e reconhecer a importância das florestas nativas, foi aprovada em 2007 a Lei Florestal nº 26.331. Esta lei estabelece um sistema para categorizar as florestas nativas com base no valor de conservação, e somente aquelas da terceira categoria podem ser submetidas a uma mudança no uso da terra para fins agrícolas. A taxa de desmatamento diminuiu de 0,94% em 2007 para 0,34% em 2015. Entretanto, esta porcentagem aumentou novamente de 2016 para 2018 devido à redução ou eliminação de impostos de exportação sobre algumas culturas, principalmente soja, o que incentivou a expansão de seu cultivo em detrimento das florestas nativas34. Alguns esforços de reflorestamento estão em andamento. Em 2017 e 2018 várias áreas foram reflorestadas na Argentina, compostas principalmente de pinus (64%) e eucalipto (25%).
A expansão da agricultura na Argentina está ligada ao cultivo crescente de oleaginosas e cereais desde 1988, especialmente nas províncias de Pampa e do Norte e nas regiões mais afetadas pelo desmatamento35. Em 2018, 39,9% das culturas eram de oleaginosas e 31,3% eram de cereais. O cultivo de oleaginosas era dominado pela soja (89%), e a produção de cereais estava concentrada principalmente no milho (54%) e no trigo (33%)36.
Investimentos de terras
A Argentina é um destino atraente para investimentos em terra devido à abundância e à fertilidade de seus solos. Os investimentos em terra na Argentina estão intimamente ligados à aquisição de terras em larga escala (LSLAs - sigla em inglês). Os principais objetivos das LSLAs são as culturas alimentares (45,8%) e a pecuária (37,5%). Desde 2000, foram concluídos 224 negócios das LSLAs, dos quais 137 foram para a agricultura e 112 para a pecuária. Outros motores desses investimentos são a silvicultura (2,3%), o turismo (2%) e os biocombustíveis (2%)37.
Argentina, fazenda Andes, foto de Françoise Gaujour, 2015, licença CC BY-NC-ND 2.0
Mesmo que a maioria dos negócios (64%) tenha sido feito por investidores nacionais, os investidores estrangeiros têm uma presença crescente. Eles vêm principalmente dos Estados Unidos, Qatar e Reino Unido, embora os investimentos da China e da Arábia Saudita estejam ganhando importância. Os investimentos desses países não são significativos devido ao número de negócios, mas devido ao seu tamanho, sendo de três a trinta vezes maior do que os investimentos domésticos38. A mineração é o maior interesse por parte dos Estados Unidos e da China, seguida da agricultura e da silvicultura em níveis diferentes39.
Com relação ao tipo de investidores, as empresas privadas são as mais comuns (63,9% da área), seguidas pelas empresas cotadas em bolsa (13,7%) e pelos fundos de investimento (7,9%)40.
O cenário dos investimentos em terra foi influenciado pela mudança no governo em 2015. Desde 2003, o governo anterior estabeleceu uma estratégia de substituição de importações com fortes regulamentações de mercado e de produtos agrícolas. Em 2015, o governo de Mauricio Macri voltou a um modelo de exportação agrícola erradicando a necessidade de ter licenças de exportação, bem como eliminando impostos de exportação sobre todos os produtos agrícolas, exceto a soja e seus derivados, cujos impostos foram reduzidos em 5%41.
O governo Macri também estabeleceu iniciativas para apoiar pequenos e médios agricultores(as) através de uma nova linha de crédito com um orçamento de US$ 62 milhões por dez anos dedicada a membros de cooperativas agrícolas42. Além disso, os pequenos(as) agricultores(as) receberam proteção legal com a Lei 27.118 sobre Agricultura Familiar, promulgada em 2015, com os objetivos de reconhecer o valor da agricultura familiar para o interesse público e promover o desenvolvimento dos produtores(as) e suas comunidades, embora ainda não tenha sido regulamentada43.
Aquisições de terras
As aquisições de terras em grande escala (LSLAs) são uma prática estendida na Argentina. Elas representam 29,6% dos negócios de terras na América Latina e 6,8% a nível global. Elas foram especialmente proeminentes em 2007 e 2011. Uma das razões para a corrida pela terra em 2007 foi a discussão em torno da Lei Florestal, o que colocaria limites a esse tipo de negócio. O auge em 2011 pode ser explicado pelo aumento dos preços globais de algumas commodities agrícolas44. As províncias do norte do Chaco e de Salta foram especialmente afetadas por essas aquisições.
O impacto socioambiental causado pela apropriação da terra muitas vezes levou a situações de conflito com as comunidades locais, agravadas pela falta de formalidade nos títulos de propriedade por parte dos habitantes daquela terra45. O Código Civil argentino descreve três formas pelas quais as pessoas têm direitos sobre o uso da terra: proprietário(a), posseiro(a) e titular. Os posseiros(as) não têm prova de propriedade, mas se comportam como se tivessem, e podem apresentar um argumento legal de propriedade.
Os conflitos, muitas vezes envolvendo violência entre os novos proprietários(as) e os posseiros(as), desencadearam a reação das organizações sociais contra a apropriação de terras e uma posterior colaboração entre governo e sociedade civil para melhorar a governança da terra46. Esta colaboração paradoxal foi possibilitada por uma política estatal inclusiva desde 2003 para introduzir questões e atores sociais na agenda política, e facilitada pelos desafios dos governos locais para implementar leis e políticas estatais para promover a criação de mecanismos de apoio aos agricultores(as) locais. O caso de Santiago del Estero, no Chaco, é um bom exemplo.
Santiago del Estero é caracterizada pelo desmatamento ativo, pela existência de um grande número de pequenos(as) proprietários(as) cuja produção é para autoconsumo ou venda nos mercados locais, pela origem indígena da maioria dessas fazendas e pela prática da gestão de terras comunitárias. Políticas que visam atrair negócios para a província levaram à priorização e expansão da agricultura industrial em detrimento da agricultura em pequena escala. A falta de títulos formais por parte dos camponeses(as) que ocupavam as terras facilitou sua expulsão, muitas vezes com violência, pelos novos(as) proprietários(as) de terras.
Movimentos sociais e ONGs, como o MOCASE, foram organizados para pressionar as autoridades locais a enfrentarem a apropriação de terras e a pararem com a violência. Isto resultou na colaboração entre ambos os atores em duas iniciativas: o Registro de Titulares de Terras (Registro de Poseedores(as)) e o Comitê de Emergência. O objetivo do Registro é reunir informações para ajudar os agricultores(as) que desejam formalizar sua posse de terra; e o objetivo do Comitê é intervir quando os direitos de posse das e dos habitantes de uma terra são ameaçados(as). Embora a formalização da titulação de terras tenha reduzido o impacto negativo da posse, também criou novos desafios no que diz respeito aos impostos fundiários. As e os ocupantes da terra não precisam pagar impostos, mas quando as comunidades obtêm o título formal da terra, são obrigados(as) a fazê-lo, embora nem todas as famílias em Santiago del Estero possam pagá-los47.
Direitos da mulher à terra
Na Argentina, independentemente de sua condição social, as mulheres têm os mesmos direitos que os homens para garantir a terra e dispor de propriedades, conforme estabelecido pela Constituição de 1994. Esta igualdade foi concedida pela Lei 11.357, que modificou o código civil para estender os direitos civis às mulheres em 1968. Em 2016, o Comitê sobre a Eliminação da Discriminação contra a Mulher (CEDAW) apontou que a falta de implementação eficiente dessa legislação afeta o acesso das mulheres à terra48.
Apesar da igualdade de gênero em relação aos direitos à terra na Constituição e que a Lei 23.302/1985 concede às comunidades indígenas o direito à terra sem distinção de gênero, normas consuetudinárias e práticas sociais em algumas comunidades podem influenciar os direitos à terra diferenciados por gênero. Por exemplo, nas comunidades indígenas nas províncias do Chaco e Formosa, a distribuição da propriedade é determinada pelo grau de parentesco, idade e gênero49.
Argentina, fazenda Andes 2, foto de Françoise Gaujour, 2015, licença CC BY-NC-ND 2.0
As mulheres têm uma presença significativa nas áreas rurais. De acordo com dados de 2013, 47% de todos os agricultores familiares são mulheres50. A Lei de Terras Rurais No. 26.727 de 2011 concede às mulheres direitos iguais aos dos homens no acesso à terra. No entanto, o relatório da CEDAW mostrou preocupação com o impacto negativo no acesso das mulheres rurais à terra resultante do Decreto Executivo No. 820/2016 de junho de 2016. O Decreto elimina algumas restrições à aquisição e arrendamento de terras rurais por indivíduos e pessoas jurídicas estrangeiras. A CEDAW também apontou o risco de despejo forçado e violência e assédio sexual no contexto de projetos de desenvolvimento econômico em larga escala, e o impacto desproporcional das mudanças climáticas e desastres naturais nas mulheres rurais51. A poluição ambiental devido ao uso de pesticidas e agroquímicos, o desmatamento e a expansão da área de agricultura e pecuária em algumas regiões, estão forçando as mulheres rurais pobres a migrarem para as cidades52.
Isolamento, falta de infra-estrutura, pobreza, acesso limitado à justiça e outros serviços básicos, e falta de acesso ao crédito e à tecnologia são outros desafios enfrentados pelas mulheres rurais na Argentina. De acordo com o Plano de Igualdade de 2018, as mulheres rurais, independentemente de sua identidade como crioulas, camponesas ou indígenas, compartilham circunstâncias que as levam a uma posição de desvantagem se comparadas a homens e mulheres rurais em áreas urbanas. As mulheres rurais recebem 25% menos salário do que os homens e, como responsáveis pelo cuidado doméstico, muitas vezes são encarregadas de fornecer comida e água para a família53.
Em resposta a esta situação, o Ministério da Produção e do Trabalho se comprometeu a criar um Grupo de Trabalho de Mulheres Rurais para analisar e planejar políticas voltadas para estas mulheres. Há também diferentes programas voltados para o desenvolvimento rural em geral, como o Programa de Desenvolvimento Rural (PRODEAR), bem como iniciativas específicas de gênero, como o programa Elas Fazem (Ellas Hacen), empreendido pelo Ministério de Desenvolvimento Social, para facilitar o acesso ao crédito para mulheres com salários baixos ou desempregadas54.
Linha do tempo - marcos na governança da terra
1850/1900 - Conquista e expropriação das terras dos povos indígenas
Como parte do processo de delimitação do território da Nação Argentina, as terras comunais foram distribuídas em lotes privados.
1940 - Promulgação de legislação e políticas para povoar o território
Facilitada pela expansão da rede ferroviária no início do século XX e a possibilidade de alcançar áreas inexploradas, a Lei de Colonização No. 12.636 disponibiliza terras do estado e bancos públicos para serem colonizadas a fim de povoar o interior do país.
1957 - Reforma agrária
No contexto de uma mudança na abordagem do desenvolvimento que favorece a industrialização e a mentalidade capitalista, a Lei nº. 2187 e a Lei nº. 14451 foram aprovadas para facilitar a compra de terras pelos produtores locais.
1984/1985 - Legislação sobre os direitos das comunidades indígenas sobre a terra
A Política Indígena e a Lei de Apoio às Comunidades Indígenas nº 23302 aloca terras para agricultura, silvicultura, mineração, exploração industrial ou artesanal às comunidades indígenas registradas.
1990 - Mercado aberto e desregulamentação econômica
Esta medida promoveu a tecnologização da agricultura, resultando na duplicação da produção agrícola e das exportações. Também provocou a concentração econômica no setor fundiário seguida da eliminação de 21% das explorações agrícolas em 10 anos.
2007 - Controle do desmatamento e a corrida pela terra
A Lei Florestal No. 26.331 tenta controlar o desmatamento causado por anos de intensa prática agrícola. Esta lei causou um pico nas negociações de terras em larga escala.
2011 - Contenção da propriedade de terras estrangeiras
A Lei de Terras Rurais nº 26737 regulamenta a propriedade estrangeira sobre terras rurais estabelecendo um limite de 15%, e estabelece a criação de um registro de terras rurais sob a supervisão do Ministério da Justiça e Direitos Humanos.
2015 - Agricultura em larga escala versus proteção ambiental
O governo de Mauricio Macri (2015-2019) apoiou a agricultura em larga escala e os comerciantes de grãos (que utilizam agroquímicos altamente poluentes), reduzindo e eliminando o imposto de exportação.
Para saber mais
Sugestões da autora para leituras adicionais
Para uma visão mais ampla de como as dinâmicas e desafios do uso, posse e concentração da terra têm se desenvolvido na Argentina, recomendamos o relatório A Problemática da Terra na Argentina, publicado pelo Fundo Internacional de Desenvolvimento Agrícola (IFAD)55.
Em relação ao uso da terra, dados recentes e detalhados sobre as explorações agrícolas em todas as províncias argentinas podem ser encontrados nos resultados finais do Censo Agrícola Nacional de 2018, publicado em 2021. A tecnologia está desempenhando cada vez mais um papel fundamental na forma como a terra é utilizada. Para saber como as empresas agrícolas iniciantes estão trabalhando para fornecer soluções digitais para o setor agrícola na Argentina, verifique o recentemente publicado Perfil da Agricultura Digital Argentina com a colaboração de várias organizações internacionais, incluindo a FAO e o Banco Mundial56.
Finalmente, vale a pena ficar de olho nas Metas Voluntárias de Neutralidade da Degradação da Terra (Metas Voluntárias de Neutralidad de la Degradación de Tierra), com as quais o governo argentino se comprometeu no contexto da agenda de 2030 para um desenvolvimento sustentável57.
Referências
[1] World Bank. https://datos.bancomundial.org/indicador/ag.srf.totl.k2?locations=AR
[2] Bertelsmann Stiftung’s Transformation Index. (2020). BTI 2020 Country Report. Argentina. https://www.bti-project.org/content/en/downloads/reports/country_report_2020_ARG.pdf
[3] D’Alessandro, J. and Lacoa, L. Universidad Nacional de La Matanza. (2011). ‘Historias de inmigrantes en Argentina’. Argentina Investiga. http://argentinainvestiga.edu.ar/noticia.php?titulo=historias_de_inmigrantes_italianos_en_argentina&id=1432
[4] Estudio del Amo. (2021). http://estudiodelamo.com/inflacion-argentina-anual-mensual-2021/
[5] Ministerio de Economía. (2021). https://www.argentina.gob.ar/economia/finanzas/presentaciongraficadeudapublica
[6] Constitution of Argentina. (1994). https://landportal.org/library/resources/landwiserecord449item485/argentina-constitution-constitution-argentina-spanish
[7] Lattuada, M. (2010). Política de tierras en la Argentina: lo estratégico y lo social.
[8] Rural Land Law No. 26737. (2011). https://www.mininterior.gov.ar/fronteras/pdf/ley-26737.pdf
[9] Dirección Nacional del Sistema Argentino de Información Jurídica. (2015). Registro Nacional de Tierras Rurales. Una Política Registral para la Soberanía Territorial. Ministerio de Justicia y Derechos Humanos.
[10] Clichevsky, N. (2002). Pobreza y políticas urbano-ambientales en Argentina. CEPAL. https://repositorio.cepal.org/bitstream/handle/11362/5748/1/S024234_es.pdf
[11] Ministerio de Desarrollo Territorial y Habitat. (2020). Disposición 5/2020. https://www.boletinoficial.gob.ar/detalleAviso/primera/235015/20200915
[12] Secretaría de Política de Suelo y Urbanismo. (2020). Plan Nacional de Suelo Urbano. Manual de Ejecución Programa Nacional. Ministerio de Desarrollo Territorial y Hábitat.
[13] Instituto Nacional de Estadística y Censos. (2021). Censo Nacional Agropecuario 2018. Resultados definitivos. Ministerio de Economía.
[14] Ibid.
[15] Ibid.
[16] Slutzky, D. (2008). Situaciones Problemáticas de Tenencia de la Tierra en Argentina. Ministerio de Economía y Producción. Secretaría de Agricultura, Ganadería, Pesca y Alimentos. Dirección de Desarrollo Agropecuario. PROINDER.
[17] Instituto Nacional de Estadística y Censos. (2021). Censo Nacional Agropecuario 2018. Resultados definitivos. Ministerio de Economía.
[18] Instituto Nacional de Estadística y Censos. (2002). Censo Nacional Agropecuario. https://sitioanterior.indec.gob.ar/cna_index.asp?_ga=2.190126827.1918510193.1573592706-1171032990.1569869924
[19] Incidental contracts are circumstantial leases for the cultivation of a piece of land for a single harvest.
[20] Slutzky, D. (2008). Situaciones Problemáticas de Tenencia de la Tierra en Argentina. Ministerio de Economía y Producción. Secretaría de Agricultura, Ganadería, Pesca y Alimentos. Dirección de Desarrollo Agropecuario. PROINDER.
[21] Ministerio de Agricultura, Ganadería y Pesca. (2013). Resolución No. 449-2013. http://servicios.infoleg.gob.ar/infolegInternet/anexos/215000-219999/215724/norma.htm
[22] ENI Argentina, Land Matrix, International Land Coalition. (2020). Gobernanza de la Tierra y los Objetivos de Desarrollo Sustentable en Argentina.
[23] Ministerio de Justicia y Derechos Humanos. (2018). Registro de Tierras Rurales: digitalizan tres de los trámites más frecuentes. https://www.argentina.gob.ar/noticias/registro-de-tierras-rurales-digitalizan-tres-de-los-tramites-mas-frecuentes
[24] Bertelsmann Stiftung. (2020). BTI Country Report Argentina. Bertelsmann Stiftung. https://bti-project.org/content/en/downloads/reports/country_report_2020_ARG.pdf
[25] Censo de Población. (2010). Instituto Nacional de Estadística y Censos. https://www.indec.gob.ar/indec/web/Nivel4-Tema-2-21-99
[26] Law 23.302 on Indigenous Policy and Support to Indigenous Communities. (1985). Ministerio de Justicia y Derechos Humanos. http://servicios.infoleg.gob.ar/infolegInternet/anexos/20000-24999/23790/texact.htm
[27] Stidsen, S. (2006). The Indigenous World 2006. IWGIA. https://www.iwgia.org/images/publications/IW_2006.pdf
[28] Instituto Nacional de Asuntos Indígenas. Ministerio de Justicia y Derechos Humanos. https://www.argentina.gob.ar/normativa/nacional/ley-26160-122499/texto
[29] Mamo, D. (ed.). (2021). The Indigenous World 2021. IWGIA. https://iwgia.org/doclink/iwgia-book-the-indigenous-world-2021-eng/eyJ0eXAiOiJKV1QiLCJhbGciOiJIUzI1NiJ9.eyJzdWIiOiJpd2dpYS1ib29rLXRoZS1pbmRpZ2Vub3VzLXdvcmxkLTIwMjEtZW5nIiwiaWF0IjoxNjE4OTE0NDcyLCJleHAiOjE2MTkwMDA4NzJ9.16jl03Uv-9UUBvvf4xV5yXkXCPlT46vbfKaGwvYvbvA
[30] The World Bank Data. https://data.worldbank.org/indicator/AG.LND.TOTL.UR.K2?end=2010&locations=AR&start=1990&view=chart
[31] Instituto Geográfico Nacional (IGN). Ministerio de Defensa. https://www.ign.gob.ar/NuestrasActividades/Geografia/DatosArgentina/Poblacion2
[32] The World Bank Data. https://data.worldbank.org/indicator/AG.LND.AGRI.ZS?end=2010&locations=AR&start=1990&view=chart
[33] Greenpeace Argentina. https://www.greenpeace.org/argentina/involucrate/deforestacion-cero-en-el-norte-de-argentina/
[34] Gobierno de Argentina. https://www.argentina.gob.ar/ambiente/contenidos/deforestacion
[35] Sili, M. and Soumoulou, L. (2011). La Problemática de la Tierra en Argentina. Conflictos y dinámicas de uso, tenencia y concentración. Fondo Internacional de Desarrollo Agrícola (FIDA), Ministerio de Agricultura, Ganadería y Pesca.
[36] Instituto Nacional de Estadística y Censos. (2021). Censo Nacional Agropecuario 2018. Resultados Definitivos.
[37] Land Matrix. (2020). Large-Scale Land Acquisitions in Argentina. A Country Perspective.
[38] Ibid.
[39] Venencia, C. D. (2020). Inversiones Extranjeras en América Latina: El Rol de Estados Unidos y China. GEISA, INENCO CONICET, Land Matrix.
[40] Land Matrix. (2020). Large-Scale Land Acquisitions in Argentina. A Country Perspective.
[41] FAO. (2017). Country Fact Sheet on Food and Agriculture Policy Trends. Argentina.
[42] Ibid.
[43] Ministerio de Justicia y Derechos Humanos. (2015). Ley 27.118 Agricultura Familiar. http://servicios.infoleg.gob.ar/infolegInternet/anexos/240000-244999/241352/norma.htm
[44] Land Matrix. (2020). Large-Scale Land Acquisitions in Argentina. A Country Perspective.
[45] Ibid.
[46] Busscher, N., Vanclay, F. and Parra, C. (2019). ‘Reflections on How State-Civil Society Collaborations Play out in the Context of Land Grabbing in Argentina’. Land – Special Issue Rural Landscapes. Challenges and Solutions to Landscape Governance 8 (8). MDPI.
[47] Ibid.
[48] Committee on the Elimination of Discrimination against Women. (2016). Concluding observations on the seventh periodic report of Argentina. 18 November 2016. CEDAW.
[49] FAO. http://www.fao.org/gender-landrights-database/country-profiles/countries-list/customary-law/en/?country_iso3=ARG
[50] FAO. http://www.fao.org/gender-landrights-database/country-profiles/countries-list/land-tenure-and-related-institutions/other-factors-influencing-gender-differentiated-land-rights/en/?country_iso3=ARG
[51] Ibid.
[52] FAO. http://www.fao.org/gender-landrights-database/country-profiles/countries-list/land-tenure-and-related-institutions/other-factors-influencing-gender-differentiated-land-rights/en/?country_iso3=ARG
[53] Instituto Nacional de las Mujeres. (2018). Plan de Igualdad de Oportunidades y Derechos. Ministerio de Salud y Desarrollo Social. https://www.argentina.gob.ar/sites/default/files/texto_piod.pdf
[54] OECD. (2019). Social Institutions & Gender Index (SIGI). Argentina. https://www.genderindex.org/wp-content/uploads/files/datasheets/2019/AR.pdf
[55] Sili, M. and Soumoulou, L. (2011). La Problemática de la Tierra en Argentina. Conflictos y dinámicas de uso, tenencia y concentración. IFAD. Ministerio de Agricultura, Ganadería y Pesca, Presidencia de la Nación. Cooperazione Italiana.
[56] Muñoz, L. A. et. al. (2021). Digital Agriculture Profile Argentina. World Bank, FAO, CIAT. Rome.
[57] Dirección Nacional de Planificación y Ordenamiento Ambiental del Territorio. (2020). Reporte Final sobre el Programa de Establecimiento de Metas Voluntarias de Neutralidad de la Degradación de la Tierra. Ministerio de Ambiente y Desarrollo Sostenible. Buenos Aires.