Atolados em Terra de Sangue
Fonte: Bang Bang Magazine
Reportagem, fotos e tradução: Carla Ruas | Edição Fronteira
Design Marcelo Armesto
Autora: Carla Ruas
Abril 13, 2015
Atolados em Terra de Sangue
Dorvalino, Marçal, Nízio e Arnaldo são alguns dos indígenas e fazendeiros que perderam a vida em uma centenária disputa por um dos solos mais férteis do Brasil.
Enquanto essa batalha (turbinada por decisões políticas) não se resolve, proprietários contrataram seguranças particulares para proteger as terras de invasões indígenas — uma nova onda de mortes agora ligadas a um CNPJ.
Na véspera do Natal de 2005, Dorvalino Rocha, indígena da etnia Guarani-Kaiowá, estava caminhando em uma estrada de chão batido no interior da fazenda Fronteira, no Mato Grosso do Sul. Ele estava indo colher mandioca para o almoço da família. De repente, avistou um carro vindo em sua direção. E logo reconheceu o motorista, parte de um grupo de seguranças particulares que trabalhava na fazenda. A equipe havia sido contratada semanas antes para, justamente, impedir que indígenas circulassem dentro da propriedade.
O carro parou.
Dorvalino não estava apenas passando pelo local. Fazia muitos anos que a sua tribo, a Nhanderu Marangatu, ocupava a fazenda por períodos alternados, construindo cabanas, plantando alimentos e caçando pequenos animais. O grupo tinha esperança que as ocupações acelerassem o processo de demarcação da fazenda como terra indígena, já que, segundo eles, aquele terreno na verdade pertencia aos seus ancestrais.
Quatro seguranças saíram do veículo. Todos armados, de acordo com testemunhas. Em seguida, o motorista, João Carlos Gimenes Brites, 38 anos, atirou duas vezes na direção de Dorvalino, sem dizer uma palavra. Uma bala atingiu o seu pé direito. A outra se alojou dentro do seu peito. Sem forças, ele caiu no chão.
Diversos indígenas correram para ver o que havia ocorrido. Alguém foi chamar a sua mulher. Quando ela chegou, Dorvalino pediu para ela pegar a sua carteira de identidade — prevendo o pior cenário, ele não queria ser confundido com um indigente. Enquanto isso, um amigo chamou uma ambulância. Mas, quando Dorvalino chegou no hospital, já era tarde.
“Eles mataram sem dó”, disse Bernardino Sarate, 40 anos, amigo da vítima, enquanto reencenava o crime no exato local onde aconteceu, na estrada de acesso da fazenda Fronteira.
Ao ser questionado sobre o crime, o atirador contou outra versão para a polícia. Disse que o seu carro havia sido repentinamente cercado por indígenas agressivos, armados com flechas, facas e pedras. E que atirou no chão para espantar o grupo, atingindo Dorvalino sem querer. Mas no fim de um longo inquérito policial, os investigadores concluíram que Brites havia, sim, cometido homicídio doloso. Ou seja, que teve a intenção de matar.
A caminho do local onde Dorvalino foi morto, aproveitei para observar os arredores da janela do carro. Havia poucos veículos na estrada de faixa única. Mas diversos caminhões trafegavam lentamente, com as caçambas cheias de grãos. Dos dois lados da estrada vi um mar verde com ondas aveludadas — que, na verdade, eram centenas de quilômetros de plantações de soja, com pequenos resquícios de Mata Atlântica. Por baixo da vegetação, havia um solo avermelhado, extremamente fértil, típico do centro-oeste brasileiro.
O cenário ilustra bem os números de produção agrícola do Brasil. O país é o segundo maior produtor de soja do mundo, atrás apenas dos Estados Unidos. E chega a movimentar 31 bilhões de dólares por ano ao exportar o produto para países como a China, segundo dados do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa). As fazendas do Mato Grosso do Sul também exibem outras culturas extremamente lucrativas, como cana-de-açúcar, eucalipto e milho.
Não é à toa que a terra seja intensamente disputada nesta região.
Entre 2003 e 2013, um total de 616 indígenas foram assassinados no Brasil — uma média de 56 vítimas por ano, de acordo com o Conselho Indigenista Missionário (Cimi). O número representa uma taxa de homicídio anual de 6 por 100 mil habitantes, segundo a Organização das Nações Unidas (ONU). É uma pequena parcela da taxa brasileira de 25 por 100 mil habitantes, mas ainda assim maior do que países inteiros, como Estados Unidos, Argentina e Chile.
A maior parte das mortes violentas, 56%, aconteceu aqui mesmo no Mato Grosso do Sul. O estado tem 77 mil índios, a segunda maior população brasileira de indígenas, atrás do Amazonas. Mas eles só têm direito de ocupar 1,6% do território estadual. Enquanto isso, no Amazonas, por exemplo, um pouco mais do dobro de indígenas têm acesso a 21,7% daquele território, apontam dados da Fundação Nacional do índio (Funai).
Os homicídios, que raramente saem nas capas dos jornais, parecem estar relacionados com um problema em comum: a luta pela terra. Assim como Rocha, muitos indígenas morreram em confrontos com fazendeiros (ou seus funcionários) depois que suas tribos invadiram propriedades privadas. Em outros casos, a busca constante por um pedaço de terra levou ao uso abusivo de álcool e drogas nas aldeias, o que por sua vez elevou índices de criminalidade e violência entre indígenas. Sem contar a taxa de suicídios, seis vezes maior do que a taxa nacional.
“O número de mortes de indígenas nos dias de hoje é consequência da terra ter sido negada para eles por décadas e décadas. É só olhar para os lugares onde eles têm bastante terra — onde tem um lugar para viver, plantar e fazer seus rituais. Nestes locais não tem suicídios e nem homicídios”, afirmou Flávio Vicente Machado, diretor regional do Cimi no Mato Grosso do Sul.
O número de homicídios seria ainda maior caso as estatísticas incluíssem os frequentes atropelamentos que ocorrem próximos das aldeias, geralmente registrados como acidentes de trânsito. Líderes indígenas como Damiana Lopes, 79 anos, acreditam que os motoristas agem de propósito, por causa da crescente tensão entre índios e não-índios na região. A suspeita tem como base a sua própria história: a sua tribo, Apikay, da etnia Guarani-Kaiowá, já perdeu oito integrantes por atropelamento nos últimos 10 anos.
A aldeia, acampada em uma fazenda na estrada BR-463, perto de Dourados, reivindica o local como sua terra ancestral. Não é possível ver suas casas da estrada, feitas de madeira com telhados de palha, mas os indígenas costumam caminhar na via pública, na direção de um mercado próximo. Neste trecho que muitos perderam as suas vidas.
“A gente é alvo dos carros grandes que passam na estrada”, afirmou Damiana, enquanto a gente conversava no meio da sua aldeia, sob um sol escaldante. A líder, já idosa, tem estatura pequena, mas aparenta ser forte para a sua idade. Ela vestia camiseta preta, calça jeans e chinelo. Na sua cabeça usava um cocar vermelho e rosa.
Uma cicatriz grossa nas costas de Nivaldo Lopes é uma lembrança constante dos atropelamentos.
Em seguida, Damiana apontou para uma cicatriz grossa nas costas do seu filho, Nivaldo Lopes, 43, como um exemplo da tragédia que a sua tribo vivencia. Ele foi atropelado por uma caminhonete em 1994, mas sobreviveu. O filho de Nivaldo, Gabriel, no entanto, foi atropelado e morreu no ano passado. “Ele tinha apenas 4 anos de idade”, lamentou Damiana.
Mãe e filho me levaram para ver o local em que Gabriel está enterrado, ao lado das outras vítimas, no fundo do terreno que ocupam ilegalmente. No caminho fizeram uma dança em homenagem aos mortos, enquanto cantavam uma música indígena em guarani e sacodiam chocalhos com as mãos. Um ritmo melancólico.
Há 120 anos, as comunidades indígenas desta região ainda viviam em paz e com algum grau de isolamento. Diversas tribos ocupavam o interior da Mata Atlântica, que na época se estendia do litoral sul brasileiro até o Mato Grosso do Sul. E ainda que os portugueses estivessem no Brasil desde 1500, “este grupo tinha escolhido ficar longe das cidades para preservar o seu estilo de vida”, afirmou o antropólogo Levi Marques Pereira, professor da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD).
Mas, após a Guerra do Paraguai, em 1870, o cenário começou a mudar. O governo brasileiro concedeu ao empresário Thomaz Larangeira o direito de extrair erva-mate na região, com o objetivo de reforçar as fronteiras do país. E ele logo contratou os indígenas como funcionários, que conheciam a floresta como ninguém. “Foi o primeiro contato de muitas tribos com a economia não-indígena. Eles eram empregados em um sistema semi-escravista, no qual tinham que trabalhar por semanas ou meses sem ter folga e estavam sempre devendo para o patrão”, disse.
Quando a erva-mate foi completamente extraída da região, por volta de 1930, os fazendeiros chegaram. Centenas de famílias vieram de todo o Brasil para trabalhar no solo extremamente produtivo do Mato Grosso do Sul. Consequentemente, a floresta foi destruída aos poucos para dar lugar ao gado e às diferentes culturas. E os indígenas foram forçados — muitas vezes de forma violenta — a se mudarem para oito reservas construídas no estado.
“Nas reservas, eles eram tratados como se estivessem num campo de concentração. Eles não podiam sair, a não ser para trabalhar em fazendas próximas. O sistema político tribal era ignorado, e eles tinham que seguir um sistema militar não-indígena. E, em um dos maiores desrespeitos com a cultura indígena, eram forçados a aprender a cultura do branco para, supostamente, se tornarem mais civilizados”, disse Pereira.
Enquanto isso, o governo estadual começou a dar os terrenos que os indígenas ocupavam — junto com documentos de posse — para os novos fazendeiros. Uma decisão que até hoje está no centro da disputa de terras no país.
Sentindo-se injustiçados, indígenas começaram a se mobilizar para pedir de volta as suas terras ancestrais — ou tekohas em Guarani. Na década de 1960, o movimento ganhou força com o surgimento de um líder indígena pequeno, que não tinha os dentes da frente, chamado Marçal de Souza. Ele era a pessoa certa para assumir a liderança do movimento, já que tinha vivido na pele as dificuldades de viver nas reservas indígenas da região.
Quando ainda era criança, Marçal viu os pais morrerem de doença dentro de uma reserva em Caarapó, no sul do Mato Grosso do Sul, possivelmente por não receberem assistência médica adequada. Mais tarde, acabou sendo criado por uma família religiosa não-indígena. Quando virou adulto, resolveu voltar para as reservas do estado para atuar como líder religioso e auxiliar de enfermagem.
Em seguida, começou a falar publicamente contra a expropriação de tekohas, a exploração ilegal de madeira e a escravização indígena. Nas décadas seguintes, discursou internacionalmente sobre estes assuntos, tanto na América Latina quanto nos Estados Unidos e até para o papa João Paulo II, para quem disse: “Nossas terras são invadidas, nossas terras são tomadas, os nossos territórios são diminuídos, e não temos mais condições de sobrevivência”, disse Marçal segundo o seu biógrafo Benedito Prezia.
Em 1980, o líder resolveu colocar o seu discurso em prática. Ele se juntou a uma tribo que estava acampada próximo da fronteira com o Paraguai. Eles acreditavam que a sua tekoha estava localizada bem no meio de uma fazenda naquele local. Uma fazenda chamada Fronteira.
Somente uma tribo no Mato Grosso do Sul, Apikay, perdeu oito integrantes nas últimas décadas.
Muito antes de Dorvalino Rocha ter seu encontro fatal com um segurança neste mesmo terreno, Marçal começou a receber ameaças de morte. Ele chegou a dizer, segundo Prezia: “Eu sou uma pessoa marcada para morrer. Mas por uma causa justa a gente morre. Alguém tem que perder a vida por uma causa”.
Em uma noite quente de novembro em 1983, Marçal ouviu uma batida na porta da sua cabana. Uma voz familiar pedia remédio para um pai doente. Mas, quando abriu a porta, dois homens armados saíram das sombras e atiraram cinco vezes.
Um dos tiros entrou pela sua boca. Marçal morreu no local.
Durante as investigações do caso, as balas no seu corpo foram identificadas como vindas de um revólver de Romulus Gamarra, empregado de um fazendeiro vizinho, Líbero Monteiro de Lima. Mas Gamarra fugiu para o Paraguai. E o fazendeiro chegou a ser acusado como mandante do crime, mas acabou absolvido em dois processos. “Essa foi a primeira de muitas mortes indígenas pela terra”, afirmou Rubem Thomaz de Almeida, antropólogo que trabalha há 40 anos na região e que conhecia a vítima pessoalmente.
Em 1988, após 20 anos de ditadura militar, uma onda de otimismo tomou o Brasil. Novos líderes democráticos prometeram resolver uma série de injustiças sociais que perduravam há décadas, entre elas, a questão indígena. Pela primeira vez houve um reconhecimento legal de que os índios brasileiros haviam sido expulsos de suas terras e que seu estilo de vida não havia sido respeitado.
Como compensação, o artigo 231 da nova Constituição estabeleceu uma política de devolução de terras, visivelmente baseada nos argumentos de Marçal de Souza. A ideia era que o governo federal comprasse as terras de fazendeiros e as devolvesse aos indígenas, invertendo o processo ocorrido anos antes. Mas, antes, os pedidos deveriam receber laudos antropológicos que comprovassem a presença de ancestrais indígenas no local, através da análise de cemitérios e artefatos.
Segundo a própria legislação, a demarcação de todas as terras indígenas do Brasil deveria ter demorado, no máximo, cinco anos para ser concluída. Mas, na realidade, já se passaram quase 30 anos, e o processo tem sido lento e, ao que tudo indica, mal sucedido.
Até hoje, o governo brasileiro demarcou apenas 38% das 1.047 terras reivindicadas pelas comunidades indígenas, de acordo com o Cimi, sendo que a maioria das demarcações (98%) está localizada no estado do Amazonas, uma área vasta e pouco populosa. No resto do Brasil, como no Mato Grosso do Sul, os pedidos se arrastam por décadas devido à uma pressão política cada vez mais forte, e à inabilidade do governo em negociar com os fazendeiros, proprietários das terras.
O presidente do Sindicato Rural de Dourados, Lúcio Damalia, 63 anos, acredita que a legislação foi mal elaborada. “O território do Brasil já tem 61% de floresta nativa e várias reservas indígenas. Se os índios ganharem mais terra, o que vai sobrar para a agricultura? Em um país com o tamanho do Brasil, reduzir a produção agrícola não é uma solução. É outro problema”, disse, sentado atrás da sua mesa de trabalho.
Segundo ele, os fazendeiros também não concordam com o preço que o governo tem oferecido pelas suas propriedades. “É uma violência por si só”, disse. Damalia argumenta que eles têm um vínculo emocional com as fazendas, já que trabalham nelas há muitas décadas. E que esse vínculo precisa ser levado em consideração pelo governo quando faz uma proposta pelas terras.
Além disso, o fazendeiro não está convencido de que os indígenas deveriam ser recompensados por ter uma origem étnica diferente. “A esta altura, eles são como qualquer pessoa, vestem as mesmas roupas e falam no celular. Alguns índios trabalham duro nas fazendas e ganham a vida honestamente. Mas muitos só querem tirar vantagem da legislação. Eles querem terra e comida de graça sem suar a camiseta. E isso não é justo”, concluiu.
Como resultado dessa controvérsia, o número de demarcações de terras indígenas tem diminuído sistematicamente. Segundo o Cimi, de 1995 a 2002, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso demarcou 145 terras indígenas. Durante seus dois mandatos, entre 2003 a 2010, o presidente Lula aprovou apenas 79 demarcações. E, desde então, em seu primeiro mandato, a atual presidente Dilma Rousseff homologou apenas 11 pedaços de terra para este fim, embora ela ainda tenha quatro anos para alcançar os colegas.
Sem uma solução à vista, os indígenas que ainda estão sem terra decidiram exercer pressão política para que seus direitos sejam reconhecidos. Por isso, começaram a se instalar, com frequência, dentro de fazendas de propriedade privada. Fazendeiros, por outro lado, juraram defender o seu território, custe o que custar, inclusive através da contratação de equipes de segurança privada.
Aurelino Arce, um policial de 32 anos de idade, viu na disputa de terra do Mato Grosso do Sul uma oportunidade para fazer bons negócios. Em 1997, ele criou, em Dourados, uma empresa de segurança chamada Gaspem. A firma logo ficou conhecida por oferecer serviços que “resolviam” conflitos indígenas em fazendas localizadas perto da fronteira com o Paraguai.
A Gaspem cobrava até 5 mil reais por mês para mandar um grupo de homens armados patrulhar fazendas dia e noite, a fim de evitar invasões de tribos locais. E, de acordo com relatórios da polícia, cobrava até 30 mil reais para ter uma tribo completamente removida de dentro de uma propriedade privada.
Nos anos 2000, a empresa estava indo tão bem que inaugurou como sede um prédio de três andares na cidade Dourados. Nesta época, tinha mais de 50 funcionários atendendo várias fazendas na região. E a procura pelos serviços continuava a crescer. Em 2005, Pio Silva e seus filhos, proprietários da fazenda Fronteira (agora dividida em fazendas menores), também viraram seus clientes.
Silva já estava cansado de lutar nesta guerra. Fazia pelo menos 50 anos que ele tentava expulsar indígenas da sua fazenda, sem sucesso. Na década de 1970, ele chegou a fazer uma grande retirada com o apoio de autoridades locais. Mas pelo menos uma família indígena permaneceu na fazenda e, com a presença do líder indígena Marçal de Souza, conseguiu reconstruir a aldeia.
Em 2005, Silva renovou as esperanças quando contratou uma equipe de nove seguranças da Gaspem para patrulhar a área dia e noite, devidamente vestidos com uniforme e botinas pretas. O trabalho da equipe era garantir que os indígenas não montassem novo acampamento no local, já que a aldeia havia sido retirada novamente, graças à uma ação judicial.
Algumas semanas mais tarde, o indígena Dorvalino Rocha foi baleado e morto pelo líder dos seguranças, Brites.
Após o assassinato, o Ministério Público começou a investigar as atividades da Gaspem com mais atenção. Promotores descobriram que haviam diversos boletins de ocorrência envolvendo a empresa nas delegacias de polícia da região. Indígenas haviam se queixado que os seguranças atiravam em direção às aldeias, roubavam as suas ferramentas agrícolas e ateavam fogo em suas cabanas.
Na madrugada de 18 de novembro de 2011, cerca de 10 funcionários da Gaspem se aproximaram sorrateiramente de outra fazenda, chamada Nova Aurora, também localizada perto da fronteira com o Paraguai. Eles vestiam roupas pretas, usavam capuzes e carregavam espingardas calibre 12. A equipe havia sido contratada para retirar 68 indígenas que ocupavam o local sob o pretexto de que ali era sua tekoha, denominada Guaiviry.
Ao contrário do que os seguranças pensavam, os indígenas não estavam dormindo. Na verdade, estavam escondidos no meio do mato, à espera, com caras pintadas, cocares coloridos e armados com facas e paus. O grupo tinha sido avisado sobre o ataque e estava pronto para lutar pelo que acreditavam ser a sua terra.
Quando os rivais entraram em confronto, houve tiros, socos e golpes de faca. A batalha só terminou quando um dos seguranças disparou contra o líder da tribo, Nízio Gomes, de 55 anos. Assustados, os outros índios fugiram para dentro do mato. E, quando voltaram, não acharam mais o seu líder. Mais tarde, uma testemunha afirmou para a polícia que viu os seguranças levarem o corpo dele embora, já sem vida, na caçamba de uma caminhonete.
Nos seus depoimentos sobre o crime, os seguranças envolvidos afirmaram que as suas armas continham apenas balas de borracha e que eram os índios, na verdade, que portavam revólveres com munição letal. Além disso, disseram que a suposta vítima, Nízio Gomes, estava vivo no Paraguai e que, portanto, não havia ocorrido qualquer assassinato.
Mas, em uma operação internacional e secreta, a Polícia Federal enviou uma equipe para procurar o líder indígena no Paraguai. E concluiu que Nízio estava, de fato, morto, apesar do corpo nunca ter sido encontrado. Restou então apenas um problema: como provar um assassinato sem o cadáver, especialmente em um país onde 92% dos homicídios permanecem sem solução, de acordo com um relatório de 2011 da Associação Brasileira de Criminologia.
Mas os investigadores continuaram a procurar por pistas e descobriram que o dono da Gaspem, Arce, tinha outros problemas, agora de natureza pessoal.
Givito Gomes, filho de Nízio Gomes, conversou sobre a saga da tribo dentro de uma tenda que serve de escola e casa de oração.
Alguns meses depois da morte de Nízio Gomes, Arce foi surpreendido em sua casa por dois homens armados, que anunciaram um assalto. Enquanto eles procuravam por dinheiro, o empresário reagiu e foi baleado três vezes: na mão, na perna e no peito. O seu corpo foi colocado no porta-malas de um carro e jogado na beira de uma estrada. Mas ele sobreviveu.
Após o crime, investigadores descobriram que Arce tinha uma amante há quatro anos. Mas a moça engravidou de outro namorado, e a dupla resolveu conspirar para roubar o dinheiro de Arce. O namorado da amante e um amigo realizaram o assalto, enquanto que a amante fingiu não saber nada durante o roubo.
O trio acabou preso sob a acusação de tentativa de homicídio. E, de dentro da prisão, a amante, já sem amor para dar, não hesitou em contar para a polícia tudo o que sabia sobre a Gaspem e a morte de Nízio Gomes. Ela confirmou que um dos seguranças tinha matado o indígena, e que seu cadáver tinha sido descartado em local desconhecido. Ela também ajudou a identificar os fazendeiros que pagaram à Gaspem para emboscar a tribo Guaiviry naquele dia.
Como a contratação de um serviço para retirada violenta de indígenas é ilegal, ao todo, 19 pessoas foram acusadas pelo envolvimento no assassinato Nízio Gomes, incluindo fazendeiros locais, advogados, políticos e associações rurais. “Pela primeira vez, a investigação foi capaz de provar uma conexão entre os proprietários de terras e atuação violenta da Gaspem contra os índios”, afirmou Ricardo Pael Ardenghi, procurador da República de Ponta Porã que trabalhou no caso.
E, após o envolvimento em dois homicídios, a Gaspem finalmente recebeu uma ordem judicial para fechar as portas em 2014. Um tribunal federal concluiu que a empresa tinha um padrão de violência contra os povos indígenas. Como punição, o proprietário da Gaspem, Arce, foi condenado a pagar uma multa de 480 mil reais.
“Houve vários indícios de que a atividade da Gaspem não era garantir a segurança, mas prestar determinados serviços, como pistolagem, a contratação de jagunços, assassinatos e atos de violência que escambam para ódio ético”, afirmou o procurador da República Marco Antônio Delfino de Almeida, que atua em Dourados. “Na realidade, era uma máscara legal para atividades ilegais. Era a última escala de uma discriminação sistemática e generalizada contra os índios”.
Os processos judiciais relativos aos assassinatos dos indígenas Dorvalino Rocha e Nízio Gomes, no entanto, ainda estão em curso. E, no Brasil, país em que a justiça é extremamente lenta, não há previsão para vereditos definitivos.
Quando visitei a tribo Nhanderu Marangatu, onde Dorvalino Rocha foi baleado e morto, fui apresentada para a sua filha, Lisandra Rocha, de 22 anos. Ela estava brincando com as suas crianças, idades um e quatro, na sala comunitária típica das casas indígenas — uma área sem paredes, protegida apenas por um telhado de palha. O seu pai morreu há quase 10 anos, mas ela ainda mora no mesmo local, dentro da fazenda Fronteira.
Lisandra só fala guarani, a língua oficial da sua tribo, embora entenda algumas palavras em português. Com dificuldades para se comunicar comigo, ela resolveu me mostrar o quanto o assassinato de seu pai ainda é relevante para a comunidade. Me levou, junto com seus filhos, para o local onde ele está enterrado — curiosamente bem no meio da plantação de cana-de-açúcar, com folhagens que chegam a ultrapassar dois metros.
O processo de demarcação da terra indígena na fazenda Fronteira ainda não foi definido. A tribo mora no local, mas tem acesso a apenas 120 dos 9 mil hectares que reivindicam como sua tekoha. O pedido de demarcação chegou a ser homologado pelo presidente Lula em 2005, o mesmo ano em que Dorvalino Rocha foi morto. Mas foi posteriormente suspenso após uma chuva de ações judiciais por parte de fazendeiros.
De acordo com o diretor regional do Cimi, Flávio Vicente Machado, o processo andou para trás porque os fazendeiros “são muito poderosos”. E, segundo ele, pode nunca ser retomado, caso a PEC 215 seja aprovada no Congresso Nacional — uma legislação que dá aos deputados federais (ao invés do Executivo) o poder de decidir sobre terras indígenas. “Os fazendeiros também têm influência sobre o Congresso e, portanto, se esta legislação for aprovada, as demarcações nunca vão sair do papel”, disse.
Em janeiro de 2014 houve esperança de uma resolução quando o Judiciário brasileiro ordenou que o governo federal pagasse aos fazendeiros uma espécie de aluguel pelas terras que estão sendo ocupadas por indígenas. A ideia resolveria um dos pontos de tensão deste conflito, o dinheiro, enquanto puniria o Executivo por não fazer o seu trabalho. Mas o governo federal rapidamente anunciou que vai recorrer da decisão porque não tem a menor intenção de abrir o bolso.
Nesse meio tempo, Lisandra Rocha não pretende deixar a fazenda Fronteira. E nem o resto da sua tribo, que já tem 1600 integrantes — número que dobrou em quase dez anos. O grupo construiu dezenas de cabanas tradicionais sobre o terreno, algumas delas com eletricidade. Eles também têm algumas construções de alvenaria, como uma escola infantil e um posto de saúde.
“Nós nos sentimos muito mais confortáveis desde que os homens da Gaspem saíram daqui”, disse Bernardino Sarate, integrante da tribo. “Não nos sentimos mais em conflito, ainda que tenha um pouco de tensão com os proprietários, porque a estrada de acesso à sede da fazenda passa bem no meio da nossa tribo. Mas nós não vamos nos sentir intimidados”, disse.
Para o antropólogo Rubem Thomaz de Almeida, a determinação dos índios de não recuar tem a ver com a sua cultura. “Eles têm um entendimento diferente sobre a terra. A gente têm uma sensação de propriedade que envolve o pagamento de um terreno e a assinatura de documentos. Mas os indígenas acreditam que eles pertencem a uma tekoha, e que devem viver e morrer ali. É muito difícil demovê-los dessa ideia”, disse.
A tribo Guaiviry, onde Nízio Gomes foi emboscado em 2011, também resolveu continuar a ocupação ilegal, apesar dos riscos. Para o grupo, o fechamento da Gaspem não trouxe paz, já que os proprietários da fazenda contrataram outros funcionários para monitorar a tribo, que cresceu de 70 para 300 pessoas.
Lúcio Damalia, presidente do Sindicato Rural de Dourados, defende a decisão dos fazendeiros de manter seguranças na fazenda. Ele cita um episódio de 2013, no qual um fazendeiro foi torturado — e morto — por indígenas da tribo Panambi, no Mato Grosso do Sul. O episódio ficou famoso devido a um vídeo que se tornou viral, no qual Arnaldo Alves Ferreira, 68 anos, luta para respirar depois de ter tido seu corpo perfurado várias vezes com facas e flechas.
De acordo com relatos da polícia, Ferreira travava uma longa disputa com os índios sobre uma cerca que separava a sua propriedade da tribo. Um dia, ele entrou armado na aldeia para discutir, e alguns índios atacaram. Seis indígenas foram presos por homicídio, embora o processo judicial continue em andamento. “Nós não queremos mais mortes, mas temos o direito de proteger a nossa terra e a nós mesmos”, disse Damalia.
Mas, na tribo Guaiviry, os seguranças geram desconfiança e medo. Os indígenas estão confinados em um espaço pequeno, uma parcela dos 40 mil hectares que pedem como sua tekoha. O terreno inclui um pequeno trecho de floresta e um rio, mas a água é poluída com agrotóxicos. Lá, a situação é bem mais precária. Eles não têm eletricidade e nem postos de saúde — dependem da visita de agentes para assistência médica .
O líder do grupo é Givito Gomes, 33 anos, filho do Nízio Gomes. Ele assumiu a liderança tribo após a morte do pai. Givito falou sobre a sua saga dentro de um galpão grande de madeira coberto com palhas e sem chão, que fica bem na entrada da aldeia. O espaço é usado tanto como escola para as crianças indígenas quanto como casa de oração. As residências, bem menores, ficam no interior do mato.
“Nós ainda nos sentimos ameaçados por homens de segurança. Volta e meia eles dão tiros na nossa direção e fazem ameaças verbais”, disse o líder, entre goles de tererê, o popular chá local. “E, para piorar, eles colocaram uma cerca em torno de nossa tribo, então não podemos ir para outras partes da fazenda para caçar tatu ou cateto, uma parte tão importante da nossa cultura”, disse.
O processo de demarcação da terra ainda está em fase de estudo. E pode levar até 20 anos para ser concluído, caso siga o padrão. “Mas nós não vamos sair daqui. Não temos medo de morrer “, disse o professor da tribo, Daniel Lemes Vasquez, 38 anos. Em seguida ele me convidou para conhecer o interior da aldeia e o local onde Nízio Gomes foi morto. Desviamos de varais de roupas e galinhas assustadas, em meio a um grupo de crianças curiosas.
Lisandra Rocha não planeja sair da fazenda, nem os outros 1600 integrantes da sua tribo.
“Sabemos que um de nós pode ser morto a qualquer momento. Eles escondem o corpo e ninguém vê. Já fizeram isso antes”, disse, entrando mata adentro. De repente, eu não consegui mais me mexer. Meus pés pareciam presos. Olhei para baixo. Eles estavam afundando naquela terra vermelha, fértil e pegajosa.
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Thanks to Bang and Leandro Demori. Translated from original by Carla Ruas (unapproved translation). Some rights reserved by the author.
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