Por Anselmo Heidrich
Há décadas que a Ucrânia debate a regulamentação de seu mercado de terras. Grupos antagônicos divergem sobre vantagens e desvantagens da formulação de uma legislação do setor. O fato é que essa reforma é necessária ao desenvolvimento econômico de longo prazo, à sua atração de capitais fixos ao território ucraniano, mas, no curto prazo, do ponto de vista político, ela é altamente impopular.
Existe uma moratória ao mercado de terras há 18 anos e no dia 13 de novembro se ensaiou sua retirada, o que seria uma decisão histórica para o país. O Projeto de Lei adotado permitiria que se comprasse e vendesse terras no país, considerado o “celeiro da Europa”. Sua aprovação contou com 240 votos, 227 dos quais com o partido do Presidente, o Servo do Povo. Os outros partidos, nacionalistas ou pró-russos, o Solidariedade, do ex-presidente Poroshenko, a Voz, do astro de rock Sviatoslav Vakarchuk, a Pátria, de Yuliya Tymoshenko, e a Plataforma de Oposição – For Life –, pró-russo, foram contra.
Apesar da justificativa para a entrada da moratória em 2001 ter sido a preparação para leis necessárias à introdução do mercado de terras, ela foi regularmente prorrogada. O grande temor é de que a terra ucraniana fosse tomada por estrangeiros, dentre os quais, chineses e árabes. Isto levou ao presidente Zelensky a anunciar que o projeto seria alterado antes de uma segunda leitura para que apenas “cidadãos e empresas ucranianas fundadas por cidadãos exclusivamente ucranianos” tivessem o direito de vender e comprar as terras, com a possibilidade de extensão desse direito a estrangeiros através de um referendo, exclusivamente, ucraniano.
Quem teria acesso à terra?
Com o objetivo de abrir o mercado, o Projeto de Lei apresentava restrições, como não mais que 35% das terras agrícolas poderem ser possuídas por um indivíduo dentro de uma comunidade territorial unificada*, não mais do que 8% do oblast e não mais do que 0,5% (200.000 hectares) no país. Na prática, como grande parte das terras agrícolas já é de propriedade de grandes empresas com participação de capital estrangeiro, as restrições mencionadas no projeto não se aplicarão à maioria delas.
Formalmente, de acordo com o documento aprovado, apenas podem comprar terras:
– Cidadãos ucranianos;
– Entidades legais;
– Comunidades territoriais;
– o Estado.
Mas o que diz a primeira versão do texto sobre a reforma quanto aos estrangeiros?
Eles podem adquirir a terra para fins agrícolas, mas são obrigados a aliená-las dentro de um ano a partir da data da aquisição da propriedade, o que seria um fator de desestímulo às transações. No entanto, há um parágrafo sobre “Disposições Transitórias do Código de Terras”, dedicado a estrangeiros e entidades estrangeiras que proíbe a compra de terras até 2024, mas concede exceções aos que trabalham na Ucrânia há, pelo menos, três anos. Além disso, quando a lei entrar em vigor, terão preferência na compra das terras.
Para os deputados que criticaram o projeto aprovado, os interesses dos grandes produtores agrícolas de origem estrangeira foram garantidos, aumentando o risco de monopolização do setor. Com o fim do comunismo, muitos empresários se formaram arrecadando ativos do Estado com valores abaixo do mercado externo, porém, o setor agrícola permaneceu fechado até que uma lei de terras fosse aprovada, que veio em 2001. No mesmo ano foi declarada a moratória para venda até 2005 e, até hoje, o Parlamento já prorrogou seu fim por nove vezes.
O que os ucranianos pensam sobre o projeto?
Enquanto a União Europeia apoia a abertura do mercado de terras ucraniano, a sociedade ucraniana a rejeita por até 73% da população, segundo pesquisa da Rating, podendo chegar até 80% de rejeição em outras fontes de pesquisa.
Quais seriam as raízes de tamanha rejeição?
O tema é sensível porque o conceito de terra na Ucrânia está intimamente ligado à ideia de nação, tanto que há uma palavra que tem ambos os significados, zemlia. Desde a coletivização forçada de terras pelo regime comunista** que a posse de sua propriedade individual é vista como uma questão de autonomia nacional. Mas, nesse sentido, a terra como propriedade privada é vista, prioritariamente, como terra para os ucranianos. Apesar da predileção dos nacionalistas ucranianos em se integrarem à União Europeia, para esta a abertura do mercado de terras é essencial ao desenvolvimento econômico do país.
Apoiadores da moratória
Dentre os opositores, além dos produtores rurais já estabilizados no mercado interno ucraniano, encontram-se partidos que solicitaram referendo popular sobre o Projeto de Lei, como a Pátria (Batkivshchyna), de Yuliya Tymoshenko, e o partido pró-russo, a Plataforma de Oposição – For Life. Junto a estes, o partido conservador-nacionalista Freedom (Svoboda), que não obteve nenhuma cadeira no Parlamento nas últimas eleições ao Legislativo, participaram de manifestações contrárias à liberação. Somando forças, mas por razões diversas, o partido liberal, Voice (Holos) também se opôs ao modelo de reforma. Como ponto em comum, todos acusam o risco de monopolização do mercado de terras. Segundo comunicado do Svoboda: “De fato, o sentido dessa ‘reforma agrária’ é semelhante à privatização de cupons da indústria ucraniana. Quando todos os cidadãos ucranianos que assinaram vales em papel em suas mãos supostamente se tornaram proprietários, mas, vários clãs oligárquicos se tornaram os verdadeiros proprietários da indústria. Com o ‘mercado de terras’ será semelhante: de fato, todos serão coproprietários, mas, de fato, oligarcas e empresas estrangeiras se tornarão donos de terras ucranianas”.
Para Yuliya Klymenko, parlamentar do partido Voice, de corte liberal, que, em princípio, apoia a liberação do mercado de terras, a situação é confusa, o que levou seu partido a não apoiar o Projeto de Lei: “Até eu, como parlamentar, não entendo completamente qual conceito final no mercado de terras nos será sugerido. Toda semana temos um novo modelo. Qualquer mudança no modelo leva a mudanças drásticas que refletem os resultados econômicos”.
Apoiadores da reforma
O argumento primordial contra a abertura do mercado de terras é pelo risco de monopolização do setor, mas, como ele se organiza hoje? Em 2001, 74% das terras aráveis da Ucrânia pertenciam a sete milhões de proprietários e80% dessa terra está sob controle de pequenas empresas agrícolas ou fazendas. Os 20% restantes (6,3 milhões de hectares) da área total das terras aráveis estão nas mãos das 100 maiores empresas, 12 das quais controlam um pouco mais da metade da área (3,2 milhões de hectares). Ou seja, mesmo com o objetivo de proteção aos pequenos e médios proprietários, a moratória à liberação do mercado acaba por proteger os grandes grupos já consolidados, evitando a competição.
Esta argumentação é a base dos defensores da reforma, que classificam as forças contrárias como atrasadas e as culpam por corresponderem aos interesses dos grandes proprietários de terras já existentes. Também refutam os alertas de que a reforma não beneficiaria a maioria dos ucranianos. Esse tipo de temor se ampara na visão de que estrangeiros tomariam as terras ucranianas não restando nada aos nacionais, mas, não foi o que ocorreu em todos os momentos de entrada de capital no país. Em um prazo de 20 anos, da independência do país até 2010 observou-se:
1. A privatização da Kryvorizhstal, a maior siderúrgica integrada da Ucrânia, quando entraram 4 bilhões de dólares em receitas (aproximadamente, 16,4 bilhões de reais, conforme a cotação de 23 de dezembro de 2019);
2. A abertura do setor bancário para estrangeiros em 2004, o que trouxe dezenas de bilhões de dólares para o país;
3. A liberalização de vistos para cidadãos da União Europeia em 2005.
E é isto que os defensores da reforma esperam, um dramático aumento dos investimentos, caso caia a moratória.
A posição da União Europeia
O Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (CEDH) decidiu contra a moratória da venda de terras ucranianas e em favor dos proprietários em 2018. Segundo ele, a moratória viola os direitos dos cidadãos ucranianos como proprietários de terras. A situação é instável desde o ano passado (2018), com o risco de a Ucrânia ter de arcar com pesadas indenizações pela compensação da extensão da moratória. Imposta pela primeira vez em 2001, com prazo para terminar em 2005, ela foi prorrogada a cada ano desde então.