Foto: Katie Maehler/Apib/Flickr (CC BY-SA 2.0 DEED)
O sócio fundador e presidente do ISA, Márcio Santilli, analisa o cenário e os desafios da política indigenista após uma ano e três meses de governo Lula
No dia 22 de abril, terá início o ATL, Acampamento Terra Livre, que vai reunir em Brasília, milhares de representantes indígenas de todas as regiões do país. O ATL é uma tradição do movimento indígena, ocorre desde 2004 e só foi suspenso no auge da pandemia. Em 20 anos de existência, a mobilização discutiu e avaliou a atuação dos três poderes da República em relação às demandas dos povos indígenas.
Neste ano, o foco principal de atenção será o desempenho do governo Lula em relação às suas políticas, programas, iniciativas, competências e orçamentos relativos às demandas das populações originárias.
Com um ano e cem dias de mandato, será possível aos dirigentes indígenas apresentar os resultados alcançados e as dificuldades enfrentadas em cada área. Por sua vez, as delegações vão relatar as situações de vida nos territórios, expressar críticas e reivindicar soluções para as pendências existentes. Mais do que antes, as expectativas superam os resultados, mas há um aprendizado coletivo em curso sobre como o Estado (não) opera.
Demarcação
A maior preocupação é com a demarcação das Terras Indígenas (TIs). Até agora, o presidente Lula homologou seis demarcações já concluídas, mas há, pelo menos, outros oito processos pendentes de decretos presidenciais. Espera-se, também, que o Ministério da Justiça retome a sua atribuição de declarar os limites das áreas a serem fisicamente demarcadas. Essa atribuição, que havia sido transferida ao Ministério dos Povos Indígenas (MPI) no início do mandato de Lula, foi devolvida ao MJ, que, no entanto, teve de compor uma nova equipe para poder exercê-la. A expectativa, então, é que, até o final do ATL, o governo anuncie homologações e declarações, além da identificação de outros territórios (saiba como é o processo de demarcação).
Embora sempre existam interesses contrariados nesses processos, parte deles não tem implicações em relação às restrições que estão sendo propostas pelo Congresso e analisadas pelo STF. É importante que o governo federal dê continuidade às demarcações, pois a demora tende a agravar conflitos.
O ATL deve protestar contra a aprovação pelo Congresso, sem qualquer discussão com as organizações indígenas, da Lei 1.4701/23, que prevê medidas restritivas para as demarcação, além do “marco temporal” de 1988, já declarado inconstitucional pelo STF. A constitucionalidade dessa lei está sendo questionada no STF e se espera que o relator, ministro Gilmar Mendes, apresente o seu relatório e viabilize uma decisão rápida do plenário, pondo fim à atual situação de insegurança jurídica.
Desintrusão
Outra grande preocupação é com as terras que, mesmo demarcadas, estão sujeitas a invasões contínuas de grileiros, madeireiros e garimpeiros. O caso da TI Yanomami (AM-RR) é o mais evidente, com a persistência de focos de garimpo, ligados ao narcotráfico, após um ano de operações para acabar com eles. Uma “casa de governo” está sendo instalada em Boa Vista, para melhor articular as ações de retirada dos invasores (desintrusão), assistência à saúde e recomposição das condições de vida das comunidades indígenas nas regiões invadidas.
Há outras situações, como as das TIs Munduruku e Kaiapó (PA), que foram objeto de operações pontuais de fiscalização, mas continuam ocupadas pelo garimpo. O governo alega que faltam recursos humanos e financeiros para sustentar várias operações simultâneas de desintrusão, mas que chegará a vez dessas áreas.
Há, ainda, casos como os das TIs Apiterewa e Trincheira-Bacajá (PA), que foram totalmente desintrusadas e onde, agora, é preciso viabilizar a recuperação e a reocupação indígena das partes desses territórios que foram invadidas e desmatadas.
Saúde
Será tenso o debate sobre a política de atenção à saúde indígena. É um tema crítico, por natureza, e, embora se reconheça a seriedade da atual gestão, os resultados deixam a desejar. As lideranças sabem que só agora, em 2024, o governo está administrando um orçamento próprio e que foi extenso o desmonte promovido no governo anterior. Mas a situação de saúde, em geral, é muito grave e não se vê melhora significativa.
Além dos desafios orçamentários e logísticos, há uma insuficiência crônica de pessoal técnico qualificado com disposição de atuar em campo. O sistema opera através de convênios precários, sujeitos a influências políticas e irregularidades. Espera-se que o Ministério da Saúde aproveite a oportunidade do ATL para discutir providências estruturais para equacionar a contratação de quadros técnicos, entre outros temas.
A nomeação de pessoas indicadas por políticos para a coordenação dos DSEIs, os Distritos Sanitários Especiais Indígenas, nas regiões, é um fator de tensão. No início do governo, foram nomeados muitos dos indicados pelas organizações locais, mas alguns deles foram mal avaliados e substituídos. Na escolha dos substitutos, indicados políticos têm prevalecido sobre a qualificação técnica.
Gestão socioambiental
Outra questão que preocupa é a demora na reestruturação da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), igualmente dilapidada no governo anterior. Suas atribuições e iniciativas estão sendo retomadas, mas continua evidente a falta de quadros e de recursos, sobretudo nas coordenações regionais, fragilizando a sua presença nos territórios e o apoio às demandas das comunidades.
A presença da Funai é importante para construir e implementar os PGTAs, os Planos de Gestão Territorial e Ambiental, que são a base da PNGATI, a Política Nacional de Gestão Ambiental das TIs. Por meio dos PGTAS, as comunidades organizam a ocupação e o uso dos territórios, constroem os seus projetos e articulam as ações de outras áreas e esferas de governo.
Cresce, também, a expectativa de que o governo e o Congresso regulamentem o pagamento por serviços ambientais e o acesso ao mercado de carbono nas TIs. Líderes locais têm sido assediados por empresas, interessadas em contratos privados no mercado de carbono, e pelos governos estaduais, que constroem projetos “jurisdicionais”.
Articulação regional
Neste ano, estão ocorrendo, em vários estados, reuniões preparatórias para o ATL. Ao saírem dos seus territórios e antes de embarcarem para Brasília, os representantes indígenas têm se reunido nas capitais dos estados para articular a sua atuação no ATL, mas, também, para discutir pendências e projetos com os governos estaduais. É crescente a interface das demandas indígenas com os poderes locais.
Estamos a seis meses das eleições municipais e, embora ainda não seja possível contabilizar com precisão, há um grande número de candidatos e candidatas indígenas em todas as regiões. O grau de avanços nas políticas indígenas é um ativo relevante para as suas pretensões.
Este ATL promete estar marcado pela intensificação da luta por direitos, dadas as ameaças oriundas do Congresso, mas também pelo rescaldo do inédito envolvimento do movimento indígena com as políticas de Estado. Espera-se que ele alavanque as políticas indígenas, com sentido de urgência.
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