“Lata d’água na cabeça, lá vai Maria (…) Lava roupa lá no alto e sonha com a vida no asfalto que acaba onde o morro principia”. Passado quase um século do lançamento dessa canção no Brasil, uma em cada quatro mulheres ainda não têm acesso à água tratada ou não é abastecida com regularidade no país, demonstrando que aquele cenário continua para as descendentes daquela e de muitas outras “Marias”. A emergência climática aumenta a vulnerabilidade.
O número de mulheres que residem em casas sem coleta de esgoto saltou de 26,9 milhões para 41,4 milhões, entre 2016 e 2019. Houve um aumento de 15,5% ao ano no número de brasileiras afetadas pelo problema, segundo o estudo Saneamento e a Vida da Mulher, realizado pelo Instituto Trata Brasil e pela EX Ante Consultoria Econômica, em parceria com a BRK Ambiental, e elaborado com o apoio da Rede Brasil do Pacto Global.
Além de maiores riscos de contrair infecções e enfrentar problemas de saúde associados à falta de saneamento e de água tratada, as meninas são afetadas em seu desempenho escolar e na progressão nos estudos, o que impacta posteriormente no ingresso delas no mercado de trabalho e, consequentemente, na obtenção de renda. Segundo o estudo “Pobreza Menstrual no Brasil: desigualdade e violações de direitos”, elaborado pelo Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA) e pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), 713 mil meninas vivem sem acesso a banheiro em seus respectivos domicílios e deixam de ir ao colégio no seu período menstrual. Ainda há 4 milhões de estudantes que não têm acesso a itens mínimos de cuidados menstruais nas escolas (absorventes, sabonetes e água). Outro ponto que merece destaque é o aumento do risco das mulheres de sofrer violência e assédio sexual no caminho de casa até onde vai buscar a água.
Só em 2019, foram registradas 273.224 internações em razão de doenças de veiculação hídrica nos hospitais da rede do SUS. Do total de pessoas internadas, 141.011 (51,6% do total) eram mulheres, e 132.213 eram homens (48,4% do total), conforme dados do Sistema Único de Saúde (DATASUS).
Assegurar a disponibilidade e a gestão sustentável da água e saneamento para todos até 2030 integra o ODS6 (acesso a água potável e saneamento) – um dos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Organização das Nações Unidas (ONU). Partindo-se do dado estimado de que 60,9 milhões de pessoas vivem em risco hídrico e de que as mulheres são as mais impactadas a partir da análise interseccional, fica claro que resolver uma questão social de acesso à água e ao saneamento básico ajudará na adaptação das consequências das mudanças climáticas (e vice-versa).
O acesso universal ao abastecimento de água e à coleta e tratamento de esgoto pode tirar mais de 18 milhões de mulheres da condição de pobreza, como aponta a pesquisa do Trata Brasil. Para o Brasil cumprir o ODS 6, juntamente com o ODS 5 (igualdade de gênero), políticas públicas de acesso universal à água e ao saneamento básico são necessárias e urgentes.
Além disso, olhar para soluções e ações existentes, que vêm das práticas já conhecidas das mais impactadas, torna-se imprescindível. Influenciadoras digitais iniciaram, nesta semana (entre os dias 30 de agosto e 8 de setembro de 2022) uma caravana para defender a revitalização do rio São Francisco pelo projeto Nordeste Potência – resultado da coalizão de organizações civis. De acordo com o projeto, o rio São Francisco, hoje, acumula oito hidrelétricas e um extenso passivo ambiental: há pelo menos 3,3 milhões de hectares a serem recuperados com vegetação nativa naquela bacia hidrográfica.
No Rio de Janeiro, na comunidade Nova Holanda, ainda nos anos 1980, mulheres se reuniram para ajudar a conseguirem água tratada e saneamento básico, conforme o Data_labe, que também destaca um outro projeto por meio do qual moradores do Complexo da Maré informam e denunciam problemas de esgoto, água e falta de saneamento, o Cocôzap.
Já na Bahia, líder do Território Quilombola do Quingoma, a mãe Donana critica a construção de uma galeria que está aterrando as nascentes do rio, conforme reportagem do ClimaInfo. No semiárido nordestino, por exemplo, a utilização de cisternas pode até resolver outro problema, o da fome, já que a água pode ser empregada na produção de alimentos.
(*) Tatiane Matheus é jornalista e pesquisadora em Justiça, Equidade, Diversidade e Inclusão no Instituto ClimaInfo
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