segunda-feira, 14 de março de 2016
fonte: PA LANTANDA
Autor: Carmelita Pires
O «Estado» da Mulher guineense
O PUSD comemorou o dia da Mulher com uma visita às mulheres horticultoras da Granja de Pessube, em Bissau. Nestes oito hectares de terra cedida pelo Estado cooperam formalmente, há quase um quarto de século, várias mulheres de etnia mancanha, na produção de alface, tomate, pimento, cenoura, feijão, repolho, couve, etc. Movidas por dificuldades em torno da situação familiar, sendo na maioria mães solteiras, com quatro a sete filhos cada uma, hoje com idades entre os quarentas e os setentas, souberam manter um colectivo unido e funcional, que gere a partilha da água e do veículo de transporte que possuem em comum para o seu serviço. A maioria depende quase exclusivamente dos rendimentos provenientes do seu trabalho na Granja, para além de uma importante fatia de autoconsumo, em torno de cerca de um quarto da produção, e ainda de uma outra parte solidariamente disponibilizada a título gracioso a amigos e amigas. Mesmo se muitas se queixam da falta de um retorno financeiro consistente, o facto é que graças ao seu trabalho e esforço, conseguiram não apenas cuidar da sua família, mas constituir-se como um importante pólo de solidariedade e de auto-abastecimento.
Sobre este país, onde a propriedade da terra continua a ser quase exclusivamente masculina, escrevia Ernst Schade, em 2005, durante a sua viagem ao interior do país: «São as mulheres que acarretam com os trabalhos mais pesados como, por exemplo, a extracção, tratamento e transporte do sal, uma actividade que implica grande esforço físico e quilómetros de estrada a percorrer, a pé. As horticultoras sacrificam-se para arrebanhar água para as hortas e as horas que elas passam no mercado para vender a colheita. São várias horas de labor. Chegadas a casa, cozinham e cuidam dos filhos». Questionando: «E os homens da Guiné? Parece que apenas deambulam, ocupados com negócios pouco claros, rezam e esperam pela tarde mais fresca. São as mulheres da Guiné-Bissau que mantêm o país a andar».
De que país estamos a falar? Podemos chamar-lhe país? Haverá um Estado na Guiné-Bissau?
Com uma cultura de matchundadi parasita, a classe política nacional tem vindo a dar provas de uma definitiva e inapelável incompetência. Estamos à porta do início da campanha do caju, e a incerteza prejudica ainda mais os termos de troca já de si muito desfavoráveis, em relação ao arroz. A esse facto vieram ultimamente juntar-se as dificuldades logísticas, as quais foram, pelo menos em parte, provocadas pelas irregularidades e arbitrariedades cometidas pelas autoridades governamentais, no porto de Bissau, ao sequestrarem propriedade privada, o que intimidou os empresários de importação e exportação, fazendo-os temer pela sua fazenda. Simultaneamente, a UEMOA, em plena expansão monetária (que não deixará de criar tensões inflacionistas na zona, o que permite antecipar uma desvalorização do câmbio ao euro) retrógrada a Guiné-Bissau para o último lugar na participação na emissão de dívida pública, estrangulando o país e abusando das suas riquezas a preço de saldo. Entretanto, a importantíssima negociação do acordo de gestão conjunta da área marítima comum com o Senegal, pode ser muito prejudicada pela actual fraqueza política gerada pela situação de desgovernação criada.
A mulher guineense está presente em todas as cenas da vida, fazendo mover o país. Dinamiza os negócios na e da família, ainda que a pequena escala. Existe protecção legal e não nos faltam as leis e os mecanismos, a nível da igualdade de género, tanto ao nível nacional, sub-regional, continental, como internacional. A Constituição da República, o Estatuto do pessoal da administração pública; a Lei geral de trabalho, a Lei-quadro dos partidos políticos e a Lei eleitoral; o Centro de Desenvolvimento do Género (CCDG) da CEDEAO; o Departamento de Promoção da Mulher da UEMOA, a Política de Género do CILSS; os programas regionais de estatísticas a favor da promoção da IEG dos PALOP; a Declaração de Salvador sobre à problemática de género e duas conferências e uma cimeira ao mais alto nível organizadas sobre o género pela CPLP; o Protocolo sobre os Direitos da Mulher, a Declaração Solene sobre a Igualdade entre os Homens e as Mulheres em África e o Fundo para as Mulheres Africanas (compromisso de dinamização da promoção da IEG no continente), todos da União Africana; e, na ONU, a ONU - Mulheres, a CEDEM/CEDAW (Convenção para a Eliminação de todas as Formas de Discriminação), a Declaração e Plataforma de Acção de Beijing, até as Resoluções 1325 (2000) e 1888 (2009) – criação de condições para que as mulheres sejam implicadas nos órgãos de decisão; etc., etc.
Mas e então?
A mulher guineense continua a ser discriminada a todos os níveis, desde o seu nascimento, até morrer; insere-se numa sociedade extremamente machista e perdida nas suas manifestações mitológicas e culturais com muitos séculos em atraso, extremamente vincada pela hierarquização dos sexos, onde prevalece a cultura de homem da casa ou homem grande e, na vida política, a cultura de matchundadi. Vive numa sociedade onde prevalecem a pobreza e as desigualdades, onde a poligamia estruturada floresce. Aqui a mulher pode ser herdada, não lhe sendo reconhecido qualquer direito de propriedade.
Nessas condições, que estará reservado à esmagadora maioria das mulheres, para além do papel de submissão, de silêncio, de condescendência, na origem da falta de auto-estima e falta de confiança em si e nas outras mulheres, continuando assim para reforçar o preconceito? Apesar de todas as leis e declarações de boas intenções, as mulheres não passam de uma em cada dez deputados no Parlamento, e de uma em vinte nas Forças Armadas, o que ilustra bem o reduzido papel político a que estão confinadas. Ademais, são vítimas de elevadíssimos níveis de violência interpessoal, física, psicológica, sexual, casamento forçado e mutilação genital feminina.
Perante este cenário, será possível concluir que a mulher participa na esfera da decisão?
A mulher guineense é sistematicamente dispensada das grandes decisões, normalmente relegada para segundo plano e sempre afastada, de forma mais ou menos subtil, dos centros de poder. A Guiné-Bissau assume-se, sem pudor, como não-Estado, violentando a condição feminina, pela inexistência de políticas estruturais de desenvolvimento direccionadas à promoção da igualdade do género e da própria mulher, que tenham em conta aspectos ligados ao poder económico e às oportunidades de valorização e promoção social. De retórica em retórica, vão-se transformando os direitos políticos, sociais e económicos das mulheres guineenses em meras miragens. A mulher guineense, principal vítima da instabilidade política crónica, é boa mãe, avó gentil, filha dedicada e esposa fiel; é condescendente, permissiva e mesmo sofredora, por vezes; é contra a violência e não é corrupta; é boa profissional, lutadora, decidida e voluntarista. Todas estas são qualidades que gostaríamos de valorizar na política, mas que decididamente escasseiam no actual meio político.
Voltando às mulheres horticultoras da Granja de Pessube… Nesse dia da Mulher, perante este impasse político, não sabendo se temos parlamento (ou quantos temos), se temos governo, ou programa e orçamento de Estado, e até se temos presidente, pareceu-nos importante destacar este exemplo prático, continuado e sustentável. Recebemos, durante a nossa visita, acompanhados pelas Rádios, um apelo pungente, um pedido de apoio, por parte destas mulheres. É que a bomba de água, que permite facilitar bastante a irrigação, se encontra avariada. As mulheres são unânimes em garantir que conseguiriam aumentar bastante a produção, caso conseguissem reunir as condições necessárias. E pedem uma coisa relativamente simples, como a manutenção do equipamento. São estas pequenas coisas, que produzem grandes efeitos, que deveriam ocupar a governação. Saber ouvir as pessoas, as suas preocupações, encontrar maneiras de resolver os problemas, mas também de premiar as experiências de sucesso, que também as há, que por cá vão surgindo. É igualmente irónico que as mulheres reclamem acesso a fertilizantes, sabendo que o nosso subsolo é rico em fostatos.
Segundo Amílcar Cabral, não basta «Defender os direitos da mulher, respeitar e fazer respeitar as mulheres, mas convencer as mulheres da nossa terra de que a sua libertação deve ser obra delas mesmas, pelo seu trabalho, … respeito próprio, personalidade e firmeza diante de tudo quanto possa ser contra a sua dignidade...» Neste contexto, como presidente do PUSD e como Mulher, considero que o actual cenário político é contra a minha dignidade patriótica. Nenhum país do mundo poderia viver meio ano de crise política. Só na Guiné, onde o Estado não existe e há muito que o povo sabe que não pode contar com ele.
Somos um país de gente maravilhosa e diversa, respeitadora e acolhedora, que não se reconhece neste triste circo a que vimos assistindo. São necessárias propostas assertivas, uma vontade férrea de mudança. Nós, mulheres, teríamos todo o gosto que os nossos homens fossem matchus. Mas verdadeiros e não só da boca para fora. Que se unissem e cooperassem em prol do bem comum; não que se esgotem em intermináveis e violentas lutas pelo poleiro, numa política da terra queimada. O discurso da virilidade inconsequente, uma governação inconsistente apenas dedicada a sonegar fundos públicos, numa indigna dependência do exterior, caracteriza o actual estado de coisas como de NÃO ESTADO. Como mulher, recuso-me a aceitar este estado de ansiedade e impotência, que julgo partilhar com todos e todas as guineenses.
Qual é o retrato do nosso país?
As estimativas oficiais para 2010 colocam a pobreza moderada (US $2) perto de 70%, superior aos valores de 2002, quando havia sido estabelecida em 65%. A pobreza extrema (US $1) também está entre as mais altas do mundo, chegando a 33% em 2010, contra 21% em 2002. As oportunidades económicas para as famílias pobres são limitadas. Três em cada quatro famílias que vivem em extrema pobreza dependem quase exclusivamente da agricultura para o seu rendimento, consumo e troca. A maioria dos Objectivos de Desenvolvimento do Milénio (ODM) estão fora do alcance para a Guiné-Bissau. Existem graves lacunas de infra-estrutura, particularmente em relação ao porto, electricidade e abastecimento de água. A economia é fortemente dependente de uma cultura - o caju - enquanto o arroz e o combustível são as principais importações, deixando o país vulnerável à flutuação de preços mundiais nestes três produtos. Se a factura energética tem sido aliviada pela queda acentuada do preço do petróleo, é inaceitável que o produtor nacional veja os seus termos de troca completamente distorcidos em seu desfavor, na troca entre castanha de caju e arroz. Esta situação tende a agravar-se com a forte diluição do peso da Guiné no seio da UEMOA, com uma participação insignificante no crescimento da massa monetária da sub-região.
Tudo isto é ainda mais lamentável sabendo como pequenos ganhos na melhoria das condições de habitação, saneamento, acesso à água potável e posse de bens duráveis podem resultar em mudanças significativas na incidência da pobreza.
Cá na Guiné-Bissau, uma em cada seis crianças morre antes dos cinco anos. Aqui, morrem oito mães por cada mil nascimentos. Entre 50 a 100 vezes pior que as mesmas taxas em Portugal. Ou seja, a nossa «performance» é lamentável, posicionando o país na cauda de todos os índices de desenvolvimento… Cerca de um quarto das famílias levam entre 15 minutos e uma hora para ter acesso a água potável. Cerca de um quarto dos alunos/as percorrem mais de uma hora para chegar à sua escola. A taxa de alfabetização das mulheres de 15 a 24 anos é de 40% (cerca de uma em cada duas, na capital, mas menos de uma em cada dez, nas regiões rurais), muito inferior à dos rapazes. O que resulta numa manutenção estrutural do analfabetismo acima de metade da população, com especial incidência na mulher. Muitas vezes, é a falta de acesso a água potável e as distâncias que é preciso percorrer, que pressionam sobretudo as raparigas e as mulheres. Coisas simples, como o acesso à água, uma fonte, podem fazer uma grande diferença.
Portanto, se as condições se reproduzem, se a mulher assume a prole (muitas vezes precocemente), e a responsabilidade de garantir água e comida à família; e as raparigas não vão à escola; como esperar melhorias significativas na condição da mulher?
Certamente que não será com o PAIGC, que precisa de fazer um longo estágio de oposição.
Carmelita Pires
Publicada por Gabinete da Presidência à(s) 22:01
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