Em solidariedade às companheiras da Costa Caribe da Nicarágua, mulheres defensoras da vida e dos territórios que contribuíram para a luta histórica dos povos indígenas e afrodescendentes, assediados na Nicarágua pelo regime de Daniel Ortega e Rosario Murillo, apresentamos este nota de distintos países:
2021 representou, para uma parte da população do planeta, um ano de esperança na busca pela vacina contra o coronavírus. No entanto, a pandemia exacerbou a perseguição aos defensores e defensoras dos direitos humanos, a usurpação de territórios tradicionais e a remoção de favelas e bairros na América Latina. O feminicídio e a violência sexual foram exacerbados, obrigando milhões de mulheres a se confinarem com seus agressores. Nesse contexto, a situação das mulheres no Caribe Norte e no Caribe Sul da Nicarágua é crítica. Embora seu direito à autonomia seja legalmente reconhecido pela Lei nº 28 de 1987, na prática os povos indígenas e afrodescendentes ainda lutam para que a autonomia da região seja efetivamente reconhecida diante das constantes ameaças ao seu território e às vidas de quem luta para sua defesa.
Em 8 de janeiro de 2021, as forças policiais que atuam na Nicarágua instalaram-se em frente à casa de Dolene Miller, obrigando a companheira a permanecer em sua residência, privando-a de sua liberdade de locomoção. De acordo com Miller: “A polícia nacional decidiu declarar minha casa uma prisão por cinco horas. Sem dizer uma palavra, ocorreu a restrição de mobilidade e o pior é que ninguém conseguiu me ajudar a comprar comida. Essa forma de restrição indica que a escalada da repressão contra os cidadãos está aumentando quando os policiais são usados pela ordem política para reprimir os cidadãos como se fossem criminosos com uma sentença final. A polícia não explicou o motivo da prisão, então em suas ações foi possível perceber a intenção de provocar e criar um conflito para ter motivos para espancar e prender pessoas ”.
Fonte: Noticias de Bluefields
Dolene Miller é uma mulher afrodescendente, ativista e defensora dos direitos da Costa Caribe da Nicarágua. Ela já foi assessora do governo comunal da cidade de Bluefields, atuou como representante creole perante a Comissão Nacional de Demarcação e Titulação (Conadeti) e atualmente faz parte da Aliança dos Povos Indígenas e Afrodescendentes da Nicarágua (APIAN). Esta não é a primeira vez que a Polícia Nacional se instala fora da casa de Miller para monitorar e cercar sua residência. Além disso, é conhecido o boicote ao programa de rádio Demarcación Ya, executado pelo Governo Comunal Creole de Bluefields, do qual participam Dolene Miller, Nora Newball e George Henriquez. Todos os sábados o programa de rádio aborda temas relacionados a direitos humanos, autonomia, processos de demarcação territorial, política, entre outros, porém, desde o início do ano, ocorreram cortes de energia no bairro da sede da rádio durante o horário da programação, impedindo sua transmissão.
O governo do presidente Daniel Ortega Saavedra e sua esposa, a vice-presidenta Rosario Murillo, permanece no poder na Nicarágua desde 2006, totalizando 15 anos apegados ao controle do país por meio de mecanismos de repressão, violência e autoritarismo. A violência deixou em seu passo mortes, prisões, usurpação de terras indígenas e afrodescendentes e exílio. 2021 será um ano difícil para a Nicarágua, pois serão realizadas eleições no país e os preparativos para a permanência de Ortega no poder incluem a aprovação de quatro leis que fortalece a proibição de protestos, fere a liberdade de imprensa e impacta a participação de opositores e opositoras na disputa eleitoral.
A primeira das leis aprovadas é a Lei dos Agentes Estrangeiros (Lei 1040/2020)(1), que proíbe o financiamento internacional e doações a organizações da sociedade civil e à mídia, especialmente grupos de oposição, como forma de limitar suas atividades de organização política. A segunda é a Lei Especial de Crimes Cibernéticos (Lei 1042/2020)(2), mais conhecida como Lei da Mordaça, que caracteriza como cibercrime a publicação ou disseminação de informações falsas e / ou deturpadas que incitem ódio ou violência e ponham em risco a estabilidade econômica, de ordem pública, de saúde pública ou de segurança soberana, com multa e reclusão. No entanto, a lei estabelece como fonte confiável de informação aquela proveniente apenas da mídia oficial que representa o governo da Nicarágua. A Lei de defesa dos direitos dos povos à independência, soberania e autodeterminação para a paz (Lei 1055/2020)(3), apesar do nome, aprova que quem for julgado por “crimes de ódio” não poderá optar por cargos de eleição popular. Em 18 de janeiro de 2021, a Assembleia Nacional da Nicarágua aprovou uma emenda constitucional que permite prisão perpétua (4) para crimes de ódio de uma forma geral. Quem determina a classificação dos crimes de ódio e / ou notícias falsas é o próprio governo da Nicarágua, podendo utilizar essas leis em seu já comprovado exercício de repressão e violência. Desta forma, qualquer meio ou pessoa que compartilhe informações diferentes dos meios de comunicação do governo pode ser visto na Nicarágua como um criminoso, causando graves danos à liberdade de expressão do jornalismo independente, dos meios de comunicação que se opõem ao governo, bem como dos povos. comunidades indígenas e tradicionais que denunciam a violência vivida todos os dias em seus territórios.
Temos consciência de que caminhar pela defesa dos territórios camponeses, afrodescendentes e indígenas custou a vida a muitas mulheres na América Latina. No Brasil, lembramos a luta de Roseli Nunes, Maria do Espírito Santo da Silva, Maria das Dores dos Santos Salvador (Dora), Terezinha Nunes Meciano, Nilce Magalhães (Nicinha), Francisca das Chagas Silva, Jane Julia de Oliveira, Marielle Franco, Rosane Santiago Silveira, Dilma Ferreira Silva e tantos outras colegas que nos deixaram, mas continuam vivas no despertar das lutas sociais e levantando suas vozes pela defesa da vida e dos territórios.
Desde distintos países enviamos nossa solidariedade, apoio, reconhecimento e admiração pela luta das mulheres da Costa Caribe da Nicarágua e continuamos atentas ao desdobramento dessas ameaças. Repudiamos as ações do governo Daniel Ortega, que pretende ameaçar, boicotar e deslegitimar suas ações a partir da lógica colonialista, patriarcal e submissa dos projetos extrativistas neoliberais.
O Coletivo Sycorax é um coletivo de tradução feminista que busca trazer para o português textos feministas anticapitalistas e antirracistas, disponibilizando traduções com licenças abertas em sua página, em prol da livre circulação do conhecimento.
A Revista Amazonas é uma iniciativa militante, formada por mulheres de diversos países que buscam se fortalecer nas lutas. A revista é um meio de publicação totalmente aberto e público, que divulga em espanhol e português conteúdos produzidos por mulheres que lutam pelo sonho de aproximar as mulheres e seus territórios insurgentes.
Referências
(1) JIMÉNEZ, Diego. «ONU expresa preocupación por aprobación de la Ley de Regulación de Agentes Extranjeros en Nicaragua». Anadolu Agency, 2020. Disponible en: <https://www.aa.com.tr/es/mundo/onu-expresa-preocupaci%C3%B3n-por-aprobac...
(2) DW América Latina. «Congreso de Nicaragua aprueba controvertida ley sobre ciberdelitos». Disponible en: <https://www.dw.com/es/congreso-de-nicaragua-aprueba-controvertida-ley-so...
(3) O Globo. «Parlamento da Nicarágua aprova lei que limita participação da oposição em futuras eleições». Disponible en: <https://oglobo.globo.com/mundo/parlamento-da-nicaragua-aprova-lei-que-li...
(4) DW América Latina. «Parlamento de Nicaragua ratifica polémica ley de cadena perpetua». Disponible en: <https://www.dw.com/es/parlamento-de-nicaragua-ratifica-pol%C3%A9mica-ley...