Sim, nós vamos agora conversar sobre utopias.
Acho melhor começar logo por onde a coisa costuma terminar, assim ganhamos tempo pra gastar com o que seja mais importante.
Essa pecha, esse rótulo, esse carimbo bem grande escrito utopia, geralmente utilizado para marcar um pensamento como desqualificado, pouco prático e não realizável, quase sempre surge na boca de alguém quando insisto em dizer que podemos e merecemos muito mais do que o menos pior.
- Você acha mesmo possível, Helena?
E o pior é que eu acho. Na verdade, tenho certeza, já que pouca coisa é mais insustentável do que a maneira como estamos vivendo. A realidade e seu colapso diário são os argumentos mais fortes que posso apresentar. Seguidos pela consciência de que foi justamente ousar o impossível aquilo que permitiu a existência de lâmpadas, saxofones, internet, aviões, transfusão de sangue e o uso de energia solar.
Entre a análise do país como está, as expectativas para o próximo governo Lula e os prognósticos apocalipticos que se tornaram corriqueiros, o que seria uma sociedade voltada aos cuidados vista dos lugares mais violentados pela falta deles?
Cultivar o cuidado
A palavra cuidado está em plena transformação há algumas décadas. Ela esteve sempre presente em nossas vidas e qualquer pessoa vai entender expressões como: Cuide-se! Tenha cuidado! ou Vá cuidar de sua vida. Aprendemos isso desde crianças e a parte de nós que cresce sendo ensinadas a se tornarem mulheres, aprendeu também que cuidar é uma tarefa sua. Cuidar da casa, cuidar dos filhos, cuidar dos idosos, cuidar das plantas, cuidar dos enfermos, cuidar da comida, cuidar.
Uma das mais importantes lições do movimento feminista foi revelar que todas estas atividades essenciais são convertidas, na sociedade capitalista, em lucro que engorda as fortunas de milionários e bilionários no mundo. A famosa frase de Silvia Federici - isso que chamam de amor é trabalho não pago - não tem sua flecha apontada para uma possível descrença no amor - como costumam responder os defensores da família e do patriarcado. É no trabalho que ela está mirando, nos mecanismos de exploração e extrativismo ampliado que transformam tudo em trabalho, em mais valor, em mais valia. É um enorme volume de riquezas transferido compulsoriamente dos corpos femininos, um volume que aumentaria em ao menos 11% o PIB em cada ano entre 2001 e 2010 “caso fosse contabilizado o trabalho gratuito que as pessoas fazem cuidando do lar e de outras pessoas” (1).
O racismo, em nossa sociedade, não deixa que escapem também as vidas masculinas de homens racializados e empobrecidos que, não apenas na imagem clássica da linha de montagem, tem sua vida sugada. Numa imagem: Duzentos anos atrás, quando se oficializou o acordo entre elites mal chamado independência, toda a merda e dejetos das pessoas brancas desaparecia magicamente de seus penicos. A mágica oculta, como sempre, o dispêndio de energia vital de alguém, de pessoas negras e indígenas a quem estava reservada a tarefa compulsória de cuidar da higiene alheia, pessoas que também carregavam brancos que não queriam caminhar nas ruas em suas seges - compulsoriamente empurrados a cuidar da mobilidade alheia. Os movimentos abolicionistas, antiracistas, movimento negros e movimentos indígenas há muito tempo revelam estas engrenagens.
A revelação dos mecanismos de saque permanente é irreversível e, então, tem lugar uma disputa encarniçada pelo sentido da palavra cuidado: de um lado está a leitura de que se trata de trabalho não remunerado; de outro a ideologia de que é uma prova de amor ser espoliado docilmente e surge agora, com força outro argumento, domesticador, que arrasta o cuidado do terreno público para o espaço privado, propagandeando que cuidado é auto-cuidado e este último significa ignorar o que ocorre à sua volta concentrando-se apenas na próprias necessidades e bem estar.
No entanto, cada uma de nossas necessidades depende, inegavelmente, de outras pessoas, de outros organismos, de outras vidas. Nem mesmo a nossa sede pode ser resolvida sem a colaboração de um rio - que deveria ter assegurados os seus direitos humanos. O nosso bem estar depende, insoluvelmente, da existência de outras vidas às quais nos associamos de muitas formas. Essas formas nem sempre são escolhidas, para a maioria de nós elas são impostas e tendem a reproduzir um mecanismo de explorar e ser explorados: O trabalho escondido por trás da comida em nossas panelas, por trás da casa limpa, o assassinato do rio por trás da mineração, o trabalho análogo à escravidão por trás das roupas “baratas”, a transfobia por trás das celebrações da tradicional familia brasileira, o sangue derramado por trás da monocultura do agro, o rastro do progresso.
As pessoas que vivem sobrecarregadas pelo trabalho de cuidados, no entanto, movem a própria existência num terreno muito mais próximo dos rastros que das aparências. São pessoas brutalmente espoliadas mas encerram uma consciência algo maior que aquela que diz que os frangos nascem já embalados na gôndola dos supermercados (ou pior ainda, no prato posto à mesa pela serviçal). Nossas vidas estão mais perto do custo real das coisas porque fazemos, nós pobres, parte do custo. Saber quanto custa nem sempre abre outras possibilidades, mas ao menos fornece elementos para imaginar como poderia custar menos: menos dores, menos vidas, menos humilhação.
Numa sociedade que se articulasse ao redor do cuidado com seus integrantes - humanos e não humanos - as decisões “individuais” e a definição de todas as políticas públicas começaria a partir de uma pergunta doméstica: quanto custa?
Quanto custa?
O Brasil encerra 2022 com 33 milhões de pessoas em situação de insegurança alimentar grave e mais da metade da população vivendo algum grau dessa insegurança (2). Esse mesmo país encerra o ano de 2022 localizado, de acordo com a Organização Mundial do Comércio (OMC) (3), como segundo maior exportador de alimentos do mundo.
E quanto custa isso? Custa a fome de metade da população. já que das 274 milhões de toneladas grãos produzidas na safra 2021/2022, mais da metade eram de soja, não de comida (4). Custa o primeiro lugar no ranking mundial do desmatamento, tendo perdido 1,7 milhão de hectares de floresta em 2020 - perda três vezes maior que a do segundo colocado, a República Democrática do Congo (5).
Perguntar quanto custa não diz respeito ao preço mas aos danos que uma escolha pode causar, é buscar perceber a relação entre coisas que parecem invisíveis. Invisíveis como as 125 milhões de pessoas que sofrem com a fome no Brasil, invisíveis como as milhões de vidas (humanas e não humanas) que foram expulsas ou exterminadas com o desmatamento de seus lugares. Enxergar relações que parecem invisíveis, é perguntar-se quem são os beneficiados pelo saldo (positivo?) da balança comercial, que chegou a 48 bilhões de dólares apoiada na soja, no petróleo, no minério de ferro e no milho - os quatro principais produtos exportados pelo Brasil (6). No rastro da investigação do quanto custa, encontraremos 730 mil pessoas presas, 730 mil famílias diretamente impactadas pelo encarceramento e dezenas de milhões de pobres fora das grades que também têm a vida gerenciada pelo mecanismo punitivista de controle e manutenção da ordem. Seguindo o rastro, encontraremos também ídolos do futebol - elemento simbólico dos mais explorados na tentativa de forjar uma identidade nacional brasileira - comendo carne salpicada de ouro enquanto garimpeiros estupram meninas Yanomami.
Quanto custa sua vida?
Você gosta de viver na cidade? Sim? Há infra-estrutura disponível e diversidade cultural ao seu alcance? Sim? E quanto custa? Custa a extração absoluta de toda a vida que habita o território mal chamado campo? Ou a extração absoluta da energia vital dos milhões que vivem amontoados nas favelas e periferias ao seu redor?
Você gosta de seu trabalho? Sim? Ele foi escolhido após uma sucessão de condições que hoje você sabe que são privilégios? Ele exige tantas horas de dedicação que você não pode cozinhar para si mesmo e nem limpar sua própria casa? Sim? E quanto custa? Quanto custa “trabalhar com o que você ama”? Custa a exploração da pessoa pobre com quem você mais convive? Ou você paga a ela por cada hora trabalhada o mesmo que você ganha por cada hora de trabalho? O seu trabalho “altamente qualificado” vale mais que o dela? Sem comer você estaria vivo para trabalhar?
Você gosta de ter bons momentos com a natureza? Sim? Pode desfrutar de alguns deles nas suas merecidas férias nalguma casa de veraneio? Sim? E quanto custa? Custa os salários de fome pagos às vezes a pessoas racializadas que cuidam do lugar quando você não está? Ou custa a exigência de mais uma estrada asfaltada para que seu carro chegue “sem danos” a seu local de deleite? Custa algum túnel rasgando sem mais considerações a barriga de uma montanha que vivia ali antes de você chegar?
Você quer viver sem medo? Quer se sentir seguro e cuidado enquanto caminha pelas ruas ou quando está em sua casa? E quanto custa isso? Custa 730 mil pessoas presas em cada vez mais cadeias - no delírio de direita - ou custa um projeto de pleno emprego, com todas as caldeiras do mundo acesas sufocando o planeta - no ideário progressista?
Você pretende cuidar melhor de si e de sua saúde? Deseja comer alimentos mais saudáveis e sem veneno? Sim? E quanto custa? Custa o salário merda pago à quem cozinha sua quinoa com legumes no vapor? Ou custa os centavos que o rapaz do ifood recebe para levar sua comida nas costas enquanto mal se alimenta? Ou custa a especulação criminosa com comida que transformou pequenos empórios gourmetizados em Oásis orgânicos rodeados pelo miojo barato que os pobres comem como sobra?
Não pergunte à Alexia. Ela também tem um custo, um que se distribui numa cadeia de feridas abertas esparramadas por corpos e territórios no mundo todo.
Pergunte a uma semente
Em seu livro Tudo sobre o amor, bell hooks, menciona uma leitura que lhe impactou quando vasculhava bibliografias. Ela cita M. Scott Peck e sua definição de comunidade como sendo a reunião de um grupo de indivíduos que “desenvolveram o compromisso significativo de alegrar-se juntos, lamentar juntos e deleitar-se uns nos outros, transformar em suas as condições dos outros” (7).
Você conhece as sementes daquilo que você come? Estabeleceu com elas alguma relação que não seja a de uso, a de descarte ou a de hobby? Começar por isso e por aceitar que não é possível viver em comunidade sem tomar em conta como a sua vida impacta nas vidas ao seu redor.
Cuidar só produz lucro numa sociedade adoecida como a nossa, que trata pandemias investigando remédios para doenças que ela mesma não pára de produzir.
Cuidar significa dedicar tempo a tarefas preciosas e essenciais (palavra do vocabulário pandêmico) de manter a vida. Cuidar significa isso, fazer a manutenção da vida, da própria vida e das vidas que ou ainda não sabem manter-se sozinhas ou já não conseguem fazê-lo sem auxílio.
Cuidar significa enxergar como vidas tão preciosas quanto a sua todas as outras, humanas e não humanas, que lhe rodeiam. Significa conferir humanidade a tudo o que vive e abandonar a ilusão de habitar uma falsa pirâmide sapiens do desenvolvimento que sustenta 1% no topo e desce bem mais abaixo do que consideramos a “base”, já formada por mulheres racializadas e empobrecidas. A “base” da pirâmide é composta por raízes também, pelo chão onde elas crescem, pelas fontes que dão de beber ao que comemos e assim como as populações racializadas, assim como as mulheres e como os corpos dissidentes, nem as raízes são objetos ao dispôr de nossa exploração.
No campo das políticas públicas, cuidar significa não aceitar zonas de sacrifício. Vamos aumentar o PIB nacional? Quanto custa? Custa as vidas dos que viviam nas áreas desmatadas? Você encara as vidas destas pessoas como o inescapável preço a pagar por algum ilusório “bem maior”? E se fosse você vivendo nestas condições, despejado, expulso, com filhos assassinados por jagunços? Encararia da mesma forma? Fosse como empregada doméstica super explorada por empregadores que acreditam estar dando uma chance a alguém desempregado ou como a criança yanomami violada pelo garimpo, você nestas condições, defenderia as mesmas políticas públicas?
Nós pertencemos à terra, nós integramos a enorme diversidade viva que tem se equilibrado com dificuldades e espasmos de dor causados pelo desenvolvimento e pela civilização.
O ideal de vida feliz dos ricos não é mais do que a imagem de uma vida que tem atrás das cortinas muito sangue, estupro, pólvora e celas. O ideal de vida dos pobres foi desenhado pelos ricos e não necessitamos de mais populismo. Já basta o excessivo espetáculo eleitoral para uma overdose dele.
Precisamos enxergar os outros como nos enxergamos. Trata-se de bem mais que integração cultural. Não é preciso integrar mais mundos a este mundo apodrecido. Os povos isolados demonstram isso quando fogem do contato com uma sociedade de quem eles só querem distância, tamanha é a predação que marca essa sociedade. O que precisamos é valorizar a vida alheia, humana e não humana, como valorizamos a nossa própria vida. Quem sempre cuidou de tudo precisa mesmo cuidar de si e quem sempre foi cuidado ou cuidada precisa se responsabilizar e cuidar um pouco, talvez ainda haja tempo.
Aliás, no pouco tempo que resta, só esse movimento radical poderia operar para que fôssemos uma sociedade que se envolve ao invés de se desenvolver. Quem sabe encontrássemos um país melhor, uma comunidade talvez, superior à péssima ideia de nação ou pátria, com a possibilidade de uma convivência rica que está atenta e é cuidadosa com o que está vivo ao nosso redor.
Quem sabe possamos reflorestar a vida e gastar tempo cuidando, mantendo a nós e ao que está em nosso entorno da melhor maneira, regenerando os danos terríveis que temos causado e apagando as marcas pesadas de nossos edifícios de concreto e asfalto.
Referências
(1) Natacha Cortêz, Como a economia do cuidado pode reparar o PIB e a vida sobrecarregada das mulheres em https://revistamarieclaire.globo.com/Mulheres-do-Mundo/noticia/2020/12/como-economia-do-cuidado-pode-reparar-o-pib-e-vida-sobrecarregada-das-mulheres.html
(2) Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil (II VIGISAN) que analisa dados coletados entre novembro de 2021 e abril de 2022 em https://olheparaafome.com.br/
(3) Em meio à exportação recorde de alimentos, seca e pandemia agravam fome no campo em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-57296843
(4) Marcos Fava Neves, Brasil pode entregar 42 milhões de toneladas de grãos a mais em 2022/23 em https://jornal.usp.br/articulistas/marcos-fava-neves/brasil-pode-entregar-42-milhoes-de-toneladas-de-graos-a-mais-em-2022-23
(5) Cida de Oliveira, Brasil segue líder isolado no ranking mundial de destruição de florestas tropicais em https://www.brasildefato.com.br/2021/04/02/brasil-segue-lider-isolado-no-ranking-mundial-de-destruicao-de-florestas-tropicais
(6) Tatiana Melino, Os números mostram: agronegócio recebe muitos recursos e contribui pouco para o país em https://ojoioeotrigo.com.br/2021/10/os-numeros-mostram-agronegocio-recebe-muitos-recursos-e-contribui-pouco-para-o-pais/
(7) Bell Hooks, Tudo sobre o amor - novas perspectivas. Editora Elephante, São Paulo.