Autor:Carla Gomes, AMBIENTE, TERRITÓRIO E SOCIEDADE DO ICS-ULISBOA
Fonte:https://ambienteterritoriosociedade-ics.org/2017/11/08/adaptacao-e-pobre...
“Agora é que vimos que trabalhar na margem do rio fica feio”. O desabafo vem de um jovem camponês que entrevistei em 2015 nas margens do Lúrio, um dos grandes rios de Moçambique. As cheias desse ano engoliram impiedosamente as machambas (terrenos de cultivo) que as populações da aldeia tão laboriosamente tinham cultivado, pondo em risco toda a época de colheitas e precipitando uma crise alimentar. Mais uma.
No período que passei no Norte do país, em trabalho de campo, as chuvas foram de tal modo intensas que o governo declarou o estado de emergência. De acordo com o Ministério da Agricultura, mais de 100 mil hectares terão sido afetados. Seguiu-se, em 2016, o ‘alerta vermelho’ devido à seca extrema (Centro e Sul), alimentando uma ‘bola de neve’ de prejuízos de que as populações rurais dificilmente chegam a recuperar.
Não surpreende, portanto, que esta aldeia à beira do Lúrio esteja numa das zonas apontadas, em sucessivos estudos – entre os quais o último relatório do Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas (IPCC) -, como as mais vulneráveis aos eventos climáticos extremos. A generalidade dos estudos recolhidos pelo IPCC aponta para um aumento futuro da intensidade e frequência de secas, chuvas intensas e cheias. Além disso, a subida da temperatura irá favorecer a propagação de pragas e doenças. Os sistemas de produção baseados na cultura do milho, em especial no continente africano, estão entre os que suscitam maiores preocupações.
Face aos riscos de perda das colheitas, as populações destas zonas têm adotado as suas próprias estratégias de mitigação de riscos, que deverão ser tidas em conta no planeamento de futuras estratégias de adaptação. Nas proximidades do Lúrio, por exemplo, muitas pessoas optam por dispersar as culturas por várias machambas. Por um lado, ao cultivar as margens do rio, têm acesso a água todo o ano e não apenas durante a época de chuvas (novembro-abril). Por outro, ao cultivar outros terrenos mais afastados evitam perder a colheita por inteiro em caso de cheias mais graves.
A dispersão das machambas permite, assim, rendibilizar os recursos naturais existentes, minimizando, dentro do possível, os riscos climáticos. Porém, os camponeses entrevistados nestas zonas reconhecem que o aumento da densidade populacional e da competição sobre as terras mais produtivas tem vindo a condicionar estas práticas. Um dos aspetos ainda pouco estudados neste contexto é o impacto da ‘corrida às terras’, por parte de investidores privados, ao longo da última década.
Crescente pressão sobre os recursos
O caso de Moçambique é paradigmático dos desafios que se colocam às populações rurais face às alterações climáticas. O país, que chegou a ser o mais pobre do mundo, ocupa ainda o 181º lugar entre 188 países no Índice de Desenvolvimento Humano das Nações Unidas (2017). Apesar das suas elevadas taxas de crescimento económico, a pobreza tem persistido nas zonas rurais, onde vive cerca de 80% da população. Mais de 70% depende da agricultura de subsistência, sobretudo de milho, arroz, feijão, mapira e mandioca.
Apesar do êxito na redução da pobreza a nível nacional desde o fim da guerra civil, há 25 anos, esta persiste entre as populações das zonas rurais, em particular no Norte e Centro do país. Os resultados da última Avaliação Nacional da Pobreza (2014/2015) revelam mesmo um aumento da pobreza rural nas províncias de Cabo Delgado, Niassa e Nampula em comparação com o anterior levantamento (2008). O Ministério da Agricultura aponta a falta de produtividade dos pequenos agricultores familiares, que não se terá alterado nos últimos 50 anos, como uma das principais causas para esta situação.
A concessão de terras a investidores privados – sobretudo na extração mineira, florestas e agricultura –, que disparou na última década, tem aumentado a competição pelas terras mais produtivas e acessíveis, próximas das principais estradas, rios e infraestruturas. Em Moçambique, estas concessões envolvem cerca de 3 milhões de hectares de terras aráveis, o equivalente a toda a terra cultivada pelos pequenos agricultores.
Em paralelo, surgem programas de desenvolvimento rural que favorecem o desenvolvimento do agronegócio em larga escala, como o ProSAVANA e o Projeto de Desenvolvimento do Vale do Rio Lúrio, e que têm gerado intensa controvérsia entre ONG e movimentos da sociedade civil. Receia-se sobretudo que haja expropriação massiva de terras, agravando ainda mais a vulnerabilidade e a insegurança alimentar das populações rurais.
FAO: “vamos ter de fazer mais com menos”
Apesar de todos os programas e investimentos para combater a fome no mundo, o facto é que ela está a aumentar pelo menos desde 2014. Existem atualmente cerca de 800 milhões de pessoas com fome e deverão ser mais 2 mil milhões até 2050, segundo a Organização das Nações Unidas para a Alimentação (FAO). A propósito do Dia Mundial da Alimentação, que se assinalou a 16 de Outubro, a FAO recorda que a fome mata, todos os anos, mais pessoas que a malária, a SIDA e a tuberculose juntas.
O Agricultural Model Intercomparison and Improvement Project estima que até 2050 a produtividade global média da agricultura decline entre 5 e 7 por cento comparativamente a um mundo em que não houvesse alterações climáticas. A África Subsariana e o sul da Ásia deverão sofrer os piores impactos.
Esperava-se que o número de pessoas em risco de fome fosse declinando nos próximos anos, devido ao crescimento económico e ao desenvolvimento tecnológico, mas as alterações climáticas poderão anular os progressos feitos até aqui.
Um dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável, acordados na Assembleia Geral das Nações Unidas em Setembro de 2015, é “acabar com a fome, alcançar a segurança alimentar, uma nutrição mais adequada, e promover uma agricultura sustentável”. Teremos de encontrar uma forma de duplicar a produção de alimentos nos próximos 30 anos para fazer face ao aumento da população global.
O grande desafio é alcançar o objetivo de uma forma social e ambientalmente sustentável. Aumentar a produtividade da agricultura, mas sem agravar a poluição química, a emissão de gases com efeito de estufa, a escassez de recursos naturais (como a água), e sem criar novos conflitos e problemas de justiça social. “Será necessário fazer mais com menos”, resume a FAO no relatório sobre o Estado da Agricultura e Alimentação de 2017.
Inevitavelmente, o recurso a Organismos Geneticamente Modificados (OGM), até agora raro em África, está na ordem do dia. Moçambique iniciou em Agosto deste ano os primeiros testes com uma variedade de milho resistente à seca e aos insetos, sob intensa controvérsia.
O certo é que as alterações climáticas vão exigir um esforço de adaptação da produção alimentar, que passa necessariamente pelo investimento na diversificação de culturas e em técnicas agrícolas climate-smart, que deverão ter em conta o potencial das práticas locais já existentes, adaptadas à realidade de cada região.
Neste contexto de crescente tensão, torna-se crucial investigar as realidades socioeconómicas que influenciam a resiliência climática e a segurança alimentar. O estudo das relações sociais a nível local, bem como das práticas de gestão dos recursos naturais, é determinante para prevenir uma degradação ainda mais profunda das condições de vida dos camponeses.
O contributo das ciências sociais – da sociologia à geografia humana – será portanto imprescindível para atingir os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável e para evitar que as alterações climáticas gerem retrocessos de desenvolvimento e graves problemas de justiça social.
Carla Gomes é doutoranda do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa (ICS-ULisboa) e da School of International Development da Universidade de East Anglia (DEV-UEA). Página Academia. carla.gomes@ics.ulisboa.pt