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News & Events Congresso reunido, recomeça o pesadelo
Congresso reunido, recomeça o pesadelo
Congresso reunido, recomeça o pesadelo
Uma balsa de soja na parte baixa do Rio Tapajós. A aprovação de três propostas de lei no Congresso Nacional autorizaria a construção de dezenas de represas e três hidrovias industriais, praticamente sem fiscalização ambiental, em três extensos rios
Uma balsa de soja na parte baixa do Rio Tapajós. A aprovação de três propostas de lei no Congresso Nacional autorizaria a construção de dezenas de represas e três hidrovias industriais, praticamente sem fiscalização ambiental, em três extensos rios

Três decretos legislativos e dois projetos de lei podem facilitar licenciamento ambiental de obras devastadoras. Bacia do Tapajós é alvo central. Bancada ruralista tem pressa

Um Congresso Nacional conservador como não se via há tempos alinha-se para aprovar uma enxurrada de normas que, juntas, desmantelarão grande parte da legislação nacional que protege o meio ambiente e garante direito aos povos indígenas e comunidades tradicionais. Um esforço que, ao que tudo indica, se intensificará em 2017.

Com legitimidade questionada e cercado de denúncias de corrupção, o governo de Michel Temer tem futuro incerto e duvidoso. Nesse cenário, a bancada ruralista usa uma série de manobras do Congresso para acelerar a aprovação de medidas que representariam o maior revés para o ambiente e direitos indígenas desde o fim da ditadura militar.

A última tentativa ocorreu no final do ano passada. O lobby ruralista apresentou inesperadamente três Projetos de Decretos Legislativos (PDLs) para autorizar a construção de três hidrovias sem necessidade de licenciamento ambiental. Os projetos seriam o PDL 119, no rio Tapajós (em dois formadores, Teles Pires e Juruena); o PDL 120, nos rios Tocantins e Araguaia; e o PDL 118, no rio Paraguai.

Se aprovados, os eventuais decretos legislativos permitirão que as hidrovias (que exigirão dezenas de dragagens, desvios de leito, destruição de pedrais e outras obras impactantes) sejam construídas independente dos seus relevantes efeitos ambientais e sociais que seriam compartilhados por todos, especialmente pela população indígena da região. O principal beneficiário das obras será o agronegócio, que terá um meio barato de exportar soja e outras commodities.

A raposa tomando conta do galinheiro

Nos padrões do sistema de licenciamento ambiental, obras como essas hidrovias demandariam a elaboração de um completo Estudo de Impacto Ambiental (EIA), documento elaborado de acordo com um termo de referência construído pelo Ibama. Entretanto, se os PDL forem aprovados, o EIA das hidrovias poderia ser substituído pelo Estudo de Viabilidade Técnica, Econômica e Ambiental (EVTEA), um estudo elaborado pelos próprios empreendedores – ou seja, pelos maiores interessados na viabilidade da obra, com uma avaliação de impactos e riscos socioambientais muito superficial e que não passa por qualquer processo efetivo de análise técnica por órgãos ambientais e discussão pública.

Os ruralistas formam uma das maiores bancadas do Congresso, de modo que o máximo que políticos mais progressistas e com consciência ambiental podem fazer é tentar ganhar tempo para que ocorram denúncias públicas e mobilizações da sociedade civil organizada no sentido contrário. Foi o que aconteceu na semana passada.

A bancada ruralista havia anexado os PDLs a outro projeto de lei que tramitava pelo Congresso em regime de urgência, para que entrassem rapidamente em votação. O plano era que eles fossem diretamente da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJC) para o plenário. Mas a manobra foi interrompida na última hora pelos deputados Chico Alencar (PSOL-RJ) e Nilto Tatto (PT-SP). Eles aproveitaram uma falta temporária de quórum na Comissão para suspender a sessão e “desvincular” os PDLs do processo que corria em regime de urgência.

A manobra funcionou e ganhou tempo. Mas os PDLs estão na agenda para a próxima reunião da Comissão, que acontecerá depois do recesso parlamentar, que acaba no início de fevereiro. Se depender das votações nas comissões e, ainda pior, em plenário, não há chance de parar os PDLs. Entretanto, os projetos teriam  impactos ambientais tão amplos — sobretudo para povos indígenas e outras comunidades tradicionais — que uma forte resistência é esperada.

O casamento do Congresso com o agronegócio

O deputado federal Nilto Tatto disse ao The Intercept Brasil que, mesmo que o governo de Michel Temer venha a cair em virtude dos sucessivos escândalos, a bancada ruralista continuaria fortalecida: “a bancada ruralista é, hoje, a bancada mais estruturada e organizada do Congresso Nacional”, disse ele. “O grupo ganhou ainda mais força após o golpe que destituiu a presidente eleita Dilma Rousseff. Por seu tamanho e sua força, a bancada ruralista foi fundamental para a votação do impeachment e é fundamental para aprovação, no Congresso, das medidas de interesse do governo”.

Embora as manobras do Congresso possam parecer muito distantes da vida cotidiana, as decisões ali tomadas podem ter impactos muito reais sobre muita gente. Veja o PDL 119, por exemplo. Se for licenciada, a hidrovia Teles Pires-Tapajós significará ou a destruição das corredeiras no rio Teles Pires ou a transposição de suas águas para evitá-las.

Qualquer opção teria um enorme impacto sobre a vida aquática do rio e todos os complexos sistemas de vida na floresta que dependem da inundação sazonal. Para os índios Munduruku, para quem as corredeiras são sagradas e habitadas por seus ancestrais, significaria, literalmente, o fim de seu mundo. Para eles, a destruição das corredeiras equivaleria dinamitar o paraíso cristão.

Mas para outros, a hidrovia faz sentido econômico. O deputado Adilton Sachetti (PSB-MT) propôs o projeto para o Tapajós. Ele é um aliado do ministro da Agricultura nomeado por Temer, Blairo Maggi – também de Mato Grosso, já conhecido como “Rei da Soja”, e cuja família detém verdadeiro império econômico do ramo de commodities agrícolas. Segundo Nilto Tatto, é Maggi quem “articula os grupos que se apossaram do governo na promoção de ações de interesse do agronegócio”.

O estado de Mato Grosso, localizado no coração do Brasil, é a principal região produtora de soja do país, mas enfrenta grandes problemas logísticos para levar seus grãos aos mercados da Europa e da Ásia. A via fluvial Teles Pires-Juruena-Tapajós tem como objetivo ajudar a resolver este problema, pois criará um novo corredor de exportação para o norte.

Sachetti disse ao Canal Rural que a construção das vias navegáveis era essencial. “Somente cerca de 4% do transporte de cargas no país é feito por hidrovias, enquanto a matriz rodoviária – cara e poluente e de maior risco – é a mais utilizada”, afirmou.

Se, na relação custo-benefício da hidrovia equacionam-se os imensos danos ambientais e o etnocídio de povos indígenas, nos benefícios há que se considerar que a via correria paralela à BR-163 (veja o mapa aqui), cuja pavimentação está quase concluída, e de uma ferrovia anunciada recentemente por Michel Temer, a Ferrogrão, que iria de Mato Grosso até o baixo Tapajós, onde a navegação até o rio Amazonas já não encontra trechos encachoeirados.

Repetindo Belo Monte

As táticas atualmente utilizadas pela bancada ruralista são muito semelhantes às empregadas em um passado recente, quando o PT de Nilto Tatto, de mãos dadas com o lobby da energia hidrelétrica, valeu-se do mesmo instrumento da PDL para livrar-se de “embaraços socioambientais”. Tratava-se do Decreto Legislativo (DL) 788/2005, usado para autorizar a construção da usina hidrelétrica de Belo Monte, no rio Xingu. Hoje, embora a usina de Belo Monte ainda nem esteja terminada, já é internacionalmente conhecida por seus dramáticos impactos sociais e ambientais, respondendo na justiça por ações que vão desde a mortandade de peixes ao genocídio indígena.

Sete anos após sua promulgação, o Decreto Legislativo 788 teve seu efeito anulado pela Justiça Federal. Segundo o Procurador da República Felício Pontes Júnior, “O decreto legislativo que autorizou Belo Monte sem consultar os índios era um verdadeiro monumento da afronta à Constituição. Finalmente, depois de anos de debates, o Judiciário se pronunciou em defesa da lei maior do país e dos direitos dos povos originários”.

Entretanto, como sempre acontece, o tempo do rolo compressor que atropela índios, ribeirinhos e a floresta não é o tempo do rito judiciário. A obra ilegal já era fato consumado e o dano ao meio ambiente e aos povos e comunidades tradicionais, irreparável.

O Decreto Legislativo 788/2005 concedeu autorizações sem consulta prévia aos povos indígenas e comunidades tradicionais que estão na região a ser impactada, e os PDLs repetem absolutamente o mesmo roteiro de ilegalidade. Não foi realizado qualquer processo de Consulta Livre, Prévia e Informada junto a esses povos e comunidades tradicionais que vivem às margens dos rios, conforme lhes garante o artigo 231 da Constituição Federal, a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e outros acordos internacionais, como a Declaração da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre Direitos dos Povos Indígenas e o Sistema Interamericano de Direitos Humanos.

E isso acontece apenas 11 dias após os desembargadores da 5ª Turma do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1), em 2 de dezembro, decidirem por unanimidade a ilegalidade da obra da hidrelétrica de Teles Pires, no rio de mesmo nome, por falta, justamente da Consulta Livre, Prévia e Informada, nos moldes previstos na Convenção 169 da OIT, com os povos Kayabi, Munduruku e Apiaká, atingidos pelo empreendimento. Ou seja, por mais que esteja claro e certo, direitos de índios e outras minorias não se fazem valer.

A Amazônia como obstáculo

Os decretos legislativos – tanto o passado, quanto os que se pretendem aprovar – são apenas uma pequena amostra do que está por vir. O poder atualmente exercido pela bancada ruralista, aparentemente, fez com que o atual governo considerasse o meio ambiente – e especialmente a Amazônia – não como algo a ser preservado, mas como um obstáculo a ser removido.

Todo um aparato jurídico e político está sendo preparado pelo Congresso para se livrar das restrições regulatórias impostas pela legislação ambiental. Uma das principais medidas é o Projeto de Lei (PL) 3.729/2004, que está, hoje, na pauta da Comissão de Finanças e Tributação (CFT).

Mais de 250 entidades repudiaram esse PL, cuja relatoria é do deputado federal Mauro Pereira (PMDB-RS), outro membro da bancada ruralista. As entidades apontam, em nota, que o novo sistema de licenciamento aumentaria muito a chance de deixar o país sujeito a outras tragédias como a ocorrida em Mariana (MG), em novembro de 2015, quando o rompimento de uma represa de rejeitos de ferro despejou 60 milhões de metros cúbicos de resíduos no Rio Doce, matando 19 pessoas e o próprio rio, com o imenso fluxo tóxicos gerado, que chegou até o Oceano Atlântico duas semanas depois. Não se sabe se e como a região se recuperará da maior catástrofe ambiental da história do Brasil, e executivos brasileiros e internacionais de mineração foram acusados pelo seu papel no desastre.

“A intenção do PL é desmantelar o sistema de licenciamento atual. O sistema ficaria tão flexível que não mais seria possível impedir ou prevenir desastres como os de Mariana.”

O PL 3.729/2004 “flexibilizaria” o licenciamento ambiental de quatro maneiras:

1_

Permitiria que uma empresa obtivesse uma licença automaticamente para qualquer atividade considerada (sem maiores critérios) como de “baixo impacto”.

2_

Os governos estaduais e municipais passariam a poder competir entre si de modo a atrair investimentos para suas regiões numa espécie de “ganha quem exige menos”, um estado poderia reduzir rigor de suas demandas em termos de proteção/mitigação ambiental para tornar-se mais “atrativo” a empreendimentos impactantes e poluidores.

3_

Passaria a haver “isenções de licenciamento”: o PL dispensa a licença ambiental para uma série de atividades e empreendimentos impactantes ambientalmente, embora não tenha estabelecido critérios consistentes para isso.

4_

A avaliação dos Estudos de Impacto Ambiental dos projetos passariam a contar com tempo reduzido, e o novo sistema estabeleceria a concessão automática da licença por vencimento desses prazos.

Isso tornariam impossíveis a análise adequada dos impactos socioambientais de empreendimentos da parte do Ibama e abriria caminho para o licenciamento sem a participação de órgãos como Funai, ICMBio, Fundação Cultural Palmares e Iphan.

A versão final do PL, segundo nota publicada pelo Instituto Socioambiental (ISA), “foi elaborada a portas fechadas com apoio do lobby da Confederação Nacional da Indústria (CNI) e da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA). Não foi discutida em audiência pública, com a sociedade civil ou pesquisadores”.

O Ministério do Meio Ambiente (MMA) disse ao The Intercept Brasil que estava “preocupado” com a possível aprovação do PL 3.729/2004, que, segundo eles, poderia provocar “uma guerra ambiental” entre os estados e gerar “insegurança jurídica”.

Em entrevista concedida ao The Intercept Brasil, Adriana Ramos, coordenadora de Política e Direito, do Instituto Socioambiental, afirma que, se tornado lei, esse projeto representaria um dos maiores retrocessos ambientais da história do país. “A intenção do PL é desmantelar o sistema de licenciamento atual, o sistema ficaria tão flexível que não mais seria possível impedir ou prevenir desastres como os de Mariana, em Minas Gerais, ou mesmo mitigar, grandes impactos socioambientais decorrentes das atividades econômicas de grandes projetos, como a hidrelétrica de Belo Monte, no Pará”. The Intercept Brasil solicitou uma entrevista com a CNA mas não obtivemos resposta.

E isso não é tudo. Provavelmente, a cereja do bolo nos retrocessos socioambientais chegados com o governo Temer surge no apagar das luzes de 2016, quando as mobilizações para reação são sempre mais difíceis, na forma de um projeto de decreto que altera o procedimento de demarcação de terras indígenas (TIs), hoje regulamentado pelo Decreto 1.775/1996.

Hoje, as conclusões de demarcações de TIs demoram décadas. No modelo proposto, ficariam praticamente impossíveis, pois além das enormes dificuldades criadas, passariam a existir muitas que dariam amplas possibilidades para paralisar os processos judicialmente. E mais, a proposta do governo possibilitaria, ainda, a diminuição das TIs já demarcadas que, por qualquer motivo, não tenham sido ainda registradas na Secretaria de Patrimônio da União (SPU) e nos cartórios de registro imobiliário. Essas TIs estariam subordinadas aos novos procedimentos previstos, anulando etapas já cumpridas com base nas regras então vigentes e reabrindo conflitos já superados e devolvendo os povos indígenas que ali vivem a uma condição de extrema insegurança.

“O decreto, que é em sua essência inconstitucional, aponta, portanto, para um novo ciclo de extermínio dos povos indígenas.”

A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), uma organização que fala para todos os povos indígenas do Brasil, publicou imediatamente um comunicado de imprensa no qual “repudiam veementemente para a opinião pública nacional e internacional a macabra do governo ilegítimo de Michel Temer de colocar fim à demarcação das terras indígenas”. A nota afirma, ainda que a medida criaria “artimanhas que empurrarão os povos indígenas à remoção, reassentamento ou expulsão, disfarçadas de legalidade, de seus territórios”.

Para Márcio Santilli, sócio-fundador do ISA e ex-presidente da Funai, o Decreto significa um grande retrocesso e uma ameaça às conquistas da Constituição de 1988. Conforme ele disse ao The Intercept Brasil:

“Desde o final da ditadura militar, é a pior proposta sobre demarcação de TIs. Ela possibilitaria, entre outras coisas, reduzir limites de TIs já homologadas e ainda não registradas em cartórios (a última etapa). Ela ainda iria além, chegaria a admitir a possibilidade de, em vez de demarcar as TIs, dar aos índios dinheiro para que continuassem sem suas terras, perpetuando uma situação de expropriação.”

O deputado federal, Nilto Tatto, concorda:

“O decreto, que é em sua essência inconstitucional, aponta, portanto, para um novo ciclo de extermínio dos povos indígenas. Ciclo este que tinha sido revertido a partir da Constituição Federal de 1988, com a fundamental garantia de acesso à terra que permitiu aos povos se reerguerem e voltarem a crescer.”

Sob esse cenário, o desmatamento dispara na Amazônia e o aparato de fiscalização implode. No início de dezembro, os chefes regionais do Ibama publicaram uma carta aberta, na qual expressaram indignação com cortes em seu orçamento, com a diminuição no seu quadro de servidores e com a indicação política de gestores estaduais sem competência e comprometimento com a causa ambiental. Referindo-se aos números divulgados pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), que mostraram um aumento de 29% no desmatamento da Amazônia entre agosto de 2015 e julho de 2016, o mais alto índice em oito anos, os servidores do Ibama alertaram que o órgão seria incapaz de conter o aumento da degradação se a situação que denunciavam não fosse alterada.

O Ministério do Meio Ambiente disse ao The Intercept Brasil, em resposta às críticas feitas por esses chefes regionais, que, apesar dos cortes do governo, o Ministério “priorizou as unidades finalísticas, especialmente as que atuam diretamente no combate ao desmatamento”. Além disso, informou que a gestão do ministro Sarney Filho obteve um aumento orçamentário na ordem de R$ 35,8 mi. Sobre a redução dos recursos humanos e a denúncia acerca das nomeações políticas dos gestores estaduais nada foi dito.

Todo esse cenário soma uma situação política dramática e incerta. Como Nilto Tatto disse ao The Intercept Brasil: “Os contratempos são violentos. Eles combinam, em sua gravidade, a ruptura institucional que ocorreu com o processo de impeachment”.