Fonte: @Verdade
Escrito por Khadija Sharife e Luis Nhachote em 25 Julho 2016
Este artigo foi produzido pela Rede Africana de Centros de Jornalismo Investigativo (ANCIR) com o apoio doConsórcio Internacional de Jornalistas Investigativos (ICIJ).
“Panama Papers”: Vendendo machambas moçambicanas a empresas offshore
Quando em 1992, a Guerra civil terminou em Moçambique, o investimento externo começou a entrar. Os investidores estrangeiros interessados em minas, reservas naturais, ilhas e depósitos de petróleo e gás. Actualmente, os investidores internacionais estão atentos a uma nova oportunidade: terras agrícolas, especialmente no Corredor de Nacala norte de Moçambique. Mais de 95 por cento da terra cultivada em Moçambique pertence a milhões de famílias que a cultiva para o seu consumo e geração de algum rendimento. Mas essa terra pode estar comprometida se um dos maiores negócios de desenvolvimento da agricultura em África, orçado em 4,2 biliões de dólares norte-americanos, for realizado pela Companhia de Desenvolvimento do Vale do rio Lúrio que prevê desalojar mais de 100 mil pessoas. Documentos existentes nos “Panama Papers” mostram como o projecto está a ser orquestrado através de uma rede de empresas opacas localizadas em paraísos fiscais e com pouca credibilidade na origem e destino dos activos financeiros.
Uma cópia da apresentação corporativa intitulada "resumo do projecto”, datada de 2014 (*), identifica 240 000 hectares de terra ao longo das margens férteis do rio Lúrio cruzando três províncias para o desenvolvimento - Cabo Delgado (18%), Niassa (25%) e Nampula (57%). Estima-se que vivam nas terras ricas 500 mil pessoas das quais cerca de 100 mil, a maioria camponeses, poderão ser desalojadas se o projecto – que prevê grandes machambas de cultivo industrial, barragens e outras infra-estruturas, como canais - for adiante sem a consulta pública adequada. Os críticos consultados defendem que um país como Moçambique precisa desesperadamente de infra-estruturas deste género. Mas a quem servirão essas infra-estruturas? Quem está por detrás do projecto? Se centenas de milhares de pessoas poderão ser seriamente afectadas pelo projecto e cerca de 100 mil desalojadas, porque a estrutura corporativa não mostra com clareza os verdadeiros beneficiários deste projecto lucrativo?
Quem pertence a quem?
De acordo com o documento, oficiosamente, uma empresa chamada Companhia de Desenvolvimento do Vale do Rio Lúrio (DVRL, acrónimo em inglês) lidera o projecto, e apesar da dimensão do negócio, pouco sabe se acerca da empresa. Sabemos que DVRL é gerido por duas entidades financeiras: Turconsult e Agricane. Esta última diz que presta serviços de consultoria para os agricultores de grande escala e tem escritórios na África do Sul e em Malta, um paraíso fiscal europeu. Não há números de telefone listados da Agricane e apenas esta disponível um e-mail geral.
[Foto do CTA] A Turconsult é dirigido por Rui Monteiro, um influente empresário moçambicano com ligações com o partido Frelimo. O perfil de Monteiro, na rede social Linkedin, mostra que é representante moçambicano da Rani Resorts, propriedade de Sheikh Adel Aujan, um financiador ligado a grandes investidores do Golfo Pérsico. Aujan é considerado o rei do turismo de luxo em Moçambique. Grande parte do turismo de Rani está em redor do corredor de Nacala: ilhas privadas, spas, resorts e hotéis cinco estrelas, acampamentos fascinantes e lucrativas participações imobiliárias.
Monteiro é considerado, por pesquisadores com os quais falamos, um guia de investidores no processo de implementação – um intermediário entre os investidores estrangeiros e o partido no poder em Moçambique, Frelimo. Rui Monteiro é ainda vice-presidente da poderosa Confederação das Associações Económicas de Moçambique para o pelouro da Política Laboral e Acção Social.
Um pedido de esclarecimentos por e-mail foi recusado por Rui Monteiro que reencaminhou as perguntas para a empresa Arcem, que também não fez comentários. A Arcem, que denominava-se anteriormente Arcadia Energia e Mineração, tem relacionada com o seu endereço nas Ilhas Maurícias dezenas de empresas de mineração listada nos “Panama Papers” tais como a Arcadia Coal, Arcadia E & P, International Exploration Mining Company, Great Lakes Resource Company Limited entre outras.
De acordo com o Boletim da República da III Série número 5, de 13 de Janeiro de 2016, a empresa Arcadia Agricane Limited adquiriu 98 por cento das acções da Companhia de Desenvolvimento do Vale do Rio Lúrio, Limitada, e a restante quota correspondente 2 por cento pertencem ao sócio Rui Monteiro. A empresa Arcadia África mudou posteriormente de nome para Lurio Valley Limited e a participação foi adquirida por outra empresa com sede nas Ilhas Maurícias denominada Arcem Resources.
A Arcem afirma ser uma "empresa de investimento baseada em recursos naturais", com 20 anos de experiência, mas pouca informação consistente ou credível pode ser encontrada relacionada à mineração como a sua actividade principal ou qualquer outro negócio envolvendo agricultura e infra-estruturas.
Segundo a rede social LinkedIn o principal executivo da Arcem é um cidadão sul-africano identificado pelo nome de Paul Main.
Os “Panama Papers” mostram uma rede de entidades fantasmas ligadas a Arcem incluindo a Great Lakes Resource Company Limited e a International Exploration Mining Company, que partilham o endereço nas Ilhas Maurícias com a mesma. Ela também revela uma porta giratória de accionistas corporativos que parecem ser entidades fantasmas ou candidatos sem actividades económicas significativas e não proprietários ou beneficiários identificáveis. Accionistas tais como Trillion Resources, Broadway Holdings, Read Internacional e R P Foster estão todas sedeadas nas Ilhas Virgens Britânicas, Bahamas, Guernsey, entre outros paraísos fiscais que protegem as empresas do escrutínio.
Informações corporativas tornadas públicas sobre o grupo Arcem e envolvendo a empresa Arcem Resources indicam Paul Main como o diretor. A Maitland, uma empresa com sede nas Ilhas Maurícias, aparece como uma das empresas responsáveis pela gestão enquanto uma outra entidade, identificada como Highlands Trust, incorporada nas ilhas Jersey (outro paraíso fiscal), surge como o proprietário beneficiário final.
Numa troca de correspondência existente nos “Panama Papers” um representante da Arcem, em resposta à Turconsult (com cópia para a Agricane, Chris Matthews), informa que a "Arcem é uma empresa privada e um dos promotores do projecto, juntamente com Agricane. A Arcem está interessada em participar nos aspectos de infra-estrutura de desenvolvimento através de uma das suas subsidiárias e actualmente tem uma participação minoritária no pretendido desenvolvimento da empresa. A participação final da DVRL será determinada pela contribuição financeira assim que o desenvolvimento começar".
Os “Panama Papers” mostram que os beneficiários efectivos da Companhia de Desenvolvimento do Vale do Rio Lúrio incluem as empresas Agri-Pemba e Agricane Commercial Holdings ao lado da Highlands Trust e da Arcadia Energia e Miining baseadas nas Ilhas Maurícias. Esta assumpção não foi confirmada nem negada pelo representante do Arcem. A Arcem não está formalmente listada no documento tornado público como uma entidade participante. O representante da Arcem que coordenou a resposta, informou-nos que os comentários eram em nome do projecto e não da Arcem e que ele não foi funcionário da empresa, e nem é capaz de falar acerca desta.
O papel da Turconsult foi descrita pelo representante da Arcem como de "conselheiro do projecto no processo de consulta e de aprovação."
A Arcem confirmou que as duas fases do projecto, estudo inicial e o processo de consulta foram concluídas e que actualmente está na terceira fase de "licenciamento e estudos aprofundados que devem ser concluídos antes do lançamento do projecto previsto para um período de aproximadamente 15 anos".
Enquanto Arcem nega quaisquer aprovações por parte do Governo de Moçambique documentos do projecto mostram que em 2012 foram assinados memorandos de entendimento para uso da terra e da água, depois das apresentações efectuadas a “Ministros, Governadores e Administradores”.
Fundos Financeiros
Uma empresa denominada Exeed é indicada, nos documentos corporativos, como o financiador principal para o segmento do projecto relativo a construção de uma barragem. A Exeed é parte da National Holdings, uma empresa privada da família real de Abu Dhabi. Dr. Kamel Abdallah, o director executivo da Exeed, dirigiu anteriormente a Rani Investiment e foi vice-presidente executivo da Aujan Industries. A empresa Arcem comentou que os financiadores ainda estavam a ser formalizados mas disse que a Exeed poderia desempenhar algum papel, “dependendo do processo de aprovação e dos estudos finais”. A empresa negou que a família Aujan tenha qualquer interesse no negócio. Fontes com conhecimento do negócio com quem falámos disseram que o financiamento para uma barragem foi uma troca para possibilitar o acesso a terra rica e água abundante que os países do Golfo precisam.
O representante de Arcem disse-nos que o Highlands Trust, a beneficiária efectiva da Arcem, é "uma família privada sem ligação com Moçambique." Os “Panama Papers” indicam que a Highlands Trusts é uma entidade incorporada nas ilhas de Jersey e que é representada pelo Church Street Trustees cuja finalidade foi dita como sendo “locais de adoração”.
O Highlands Trust recebe fundos emprestados por uma empresa com sede em Ilhas Virgens Britânicas chamada Termic, cujos accionistas são o Highlands Trust e uma família sul-africano, os Stewarts. Os fundos são emprestados a uma taxa de juro de 0,25 por cento, uma taxa muito favorável, indicando provavelmente que as empresas façam parte da mesma estrutura.
De acordo com os contratos, os empréstimos da Termic foram destinados as entidade de mineração - Gem Diamonds, onde um dos membros da família Stewart foi indicado como director, segundo dados da empresa. Esta empresa é accionista maioritária da lucrativa mina de diamante de Letseng no Lesoto.
Fontes internas da estrutura da Arcem afirmaram este não é o Highlands Trust baseado nas Ilhas Jersey mas um outro. (A empresa Gem Diamonds negou ter recebido empréstimos do Highlands Trust e da Termic e declarou não ter qualquer relação com a empresa Arcem).
Números obscuros
Investidores com financiamento pouco claros e estruturas obscuras têm agora a missão de garantir o sustento de centenas de milhares de moçambicanos. Os responsáveis da empresa estão, pelo menos, a adular as pessoas que vivem no Corredor de Nacala. Em resposta a uma entrevista por e-mail, a empresa Arcem disse que enquanto o projecto está em fase embrionária, “a comunidade é um participante importante no projecto e só terá benefícios dos investimentos. Temos enfatizado isso em todas as apresentações e nos processos de consulta pública”.
As previsões de cerca de 100 mil pessoas desalojados são feitas por organizações da sociedade civil moçambicana, como a Acção Académica para o Desenvolvimento das Comunidades Rurais (ADECRU) com base em dados do Instituto Nacional de Estatística. De acordo com Vicente Adriano, da ADECRU, o cálculos foram feitos a partir do “número total de agregados familiares” que vivem ao longo do Rio Lúrio, nos distritos e províncias indicadas como abrangidas pelo projecto e tem uma margem de erro de 5 por cento. Adriano, cuja organização realizou uma pesquisa nos distritos que serão afectados, disse que “não havia qualquer tipo de consulta nas comunidades locais. Algumas das autoridades locais, mesmo a nível provincial e nacional, nunca sequer ouviram falar deste projecto”.
Mas os investidores privados que prestaram mais atenção ao projecto alegam que esses números de potenciais desalojados estão inflacionados. A empresa Arcem esclareceu que, embora a Agricane tenha experiência na agricultura de uma forma geral o projecto é de infra-estruturas. Todavia, um documento da empresa divulgado em Novembro de 2015, indica que o projecto expandiu a sua área-alvo para o desenvolvimento agrícola de 240 000 hectares para 600 000 hectares. Fez pedidos de Direitos de Uso e Aproveitamento da Terra (DUAT) para uma área de 347 528 hectares na província de Nampula, 107 117 hectares na província de Cabo Delgado e de 152 591 hectares na província de Niassa, tornando-se no maior projecto de desenvolvimento agrícola do continente africano.
Cópia do memorando de entendimento destinado ao uso da terra e da água que foi aprovado pelo Governo não foi obtida.
Não foi possível ouvir os comentários do ministro da Agricultura e Segurança Alimentar, José Pacheco e da sua assessora de imprensa, Dra. Inês Catine, até ao fecho desta publicação.
Embora Arcem tenha dado por concluído o processo de consulta, recusa-se a divulgar os detalhes do processo e que comunidades tomaram parte nele. O processo foi descrito como secreto por todos aqueles com quem falamos. Por outro lado, embora o projecto tenha sido apresentado ao Conselho de Ministros em 2015, o Governo ainda não se pronunciou oficialmente acerca do negócio.
Mas como o Governo assinou um memorando de entendimento com uma empresa sem dados detalhados sobre os seus proprietários e a credibilidade dos mesmos, assim como sem saber claramente quem são os investidores? Quando perguntado se o governo poderia negociar o reassentamento dos cidadãos, um líder da sociedade civil afirmou que “mesmo quando são 1000 hectares de terra há vários conflitos”. A fonte acrescentou que, apesar da existência de leis que reconhecem os direitos costumeiros dos camponeses o maior problema tem sido o “conflito de interesses”.
É um conflito de interesses na infra-estrutura que facilita a extracção de recursos - terra, água e habitantes como futuro trabalho agrícola na terra que será realizado - onde o projecto é feito à imagem de investidores financeiros estrangeiros não cidadãos. O documento divulgado mostra que 77 milhões de dólares foram alocados para a Responsabilidade Social das Empresas (RSE) - Cerca de 500 000 pessoas vão perder seu actual sustento.
“A maior parte do investimento tem o envolvimento directo de pessoas do Governo e figuras importantes do partido Frelimo", declarou Vicente Adriano. "Temos pessoas que são simultaneamente políticos, empresários e funcionários do Governo. Não podemos esperar que o juiz faça a sua sentença".
Este artigo foi produzido pela Rede Africana de Centros de Jornalismo Investigativo (ANCIR) com o apoio doConsórcio Internacional de Jornalistas Investigativos (ICIJ).
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