Fonte: Jornal de Angola
Fotografia: Arimateia Baptista | Edições Novembro
Autor: Domingos Mucuta | Cacula
10 de Janeiro, 2017
Duas centenas de famílias da comunidade san na localidade de Hupa, comuna de Chiquaqueia, província da Huíla, receberam terras para a agricultura, no quadro do projecto de Apoio à Segurança Alimentar e Nutricional.
O projecto, a cargo da Organização Cristã de Apoio ao Desenvolvimento Comunitário (Ocadec), permite que membros dessa comunidade deixem a vida nómada para fixarem residência e terem acesso a serviços básicos.
Avaliado em 50 mil euros, financiados pela Organização Internacional Miserio, o projecto tem em atenção questões ligadas à promoção do acesso à terra, segurança alimentar, organização e liderança comunitária.
Os resultados do trabalho em curso foram destacados pela administradora municipal da Cacula, Carmen Duarte, durante uma actividade de solidariedade, promovida pela esposa do governador da Huíla, Guilhermina Tyipinge, para crianças desse grupo minoritário angolano durante a quadra festiva.
Carmen Duarte diz que o projecto tem um grande impacto no assentamento dos membros da comunidade san, que deixam a vida de caça e de recolecção para se dedicarem à produção agrícola, além de se promover a sua integração social e convivência harmoniosa com os povos bantu.
“Hupa tem a maior comunidade san do município que, com o apoio da administração municipal e, sobretudo, com a parceira da Ocadec, realiza ensaios para deixar a vida nómada, velando pelo princípio da unidade nacional”, afirma.
O coordenador da Ocadec, Benedito Kessongo, sublinha que as acções têm o apoio institucional da administração municipal e do Governo Provincial da Huíla, assim como de organismos do Estado interessados na inserção da comunidade san no processo produtivo e social.
Benedito Kessongo refere que, com mais apoios financeiros, se pode melhorar os resultados e alargar as acções a outras localidades, onde grupos minoritários precisam de assistência em várias vertentes para melhorar as suas condições de vida.
“Gostaríamos de ter mais fundos mais volumosos e espaços de tempo maiores, porque estamos a trabalhar na mudança de mentalidades e a facilitar processos de organização comunitária e de convivência entre grupos étnicos diferentes”, argumenta o responsável.
Residência fixa
As acções de sensibilização e a criação de condições para o assentamento da comunidade san são as principais metas da Ocadec. O projecto começou com um diagnóstico sobre a situação de crise e a falta de meios nas comunidades.
Esta realidade motivou a associação comunitária a definir estratégias de trabalho e a mobilizar financiadores nacionais e internacionais. A comunidade teve acesso seguro à terra. O foco na sedentarização e organização comunitária deve-se à timidez inicial da comunidade.
Os membros da comunidade foram sensibilizados a deixar as velhas actividades de caça e de recolecção e a fixarem residência, desenvolverem a agricultura e terem acesso com regularidade aos serviços sociais básicos. Os membros da comunidade san estão convencidos de que hoje as mudanças climáticas influenciam a regularidade das chuvas e a intensa acção do homem sobre a natureza torna escassos os animais.
Benedito Kessongo revela que mais de 200 famílias da comunidade san estão sedentarizadas e dedicam-se a actividades agrícolas. Mais de metade está na localidade da Hupa e outra no sector de Derruba, município de Quipungo, também apoiada pelo projecto.
“A vida nómada já não faz sentido e é quase impossível aos san desenvolver mais as suas actividades tradicionais por limitações impostas pelas alterações climáticas”, afirma. “Hoje, perguntam-se para onde vão, porque não há espaços e muitos estão ocupados por conta do desenvolvimento económico”, acrescenta.
A associação defende a sedentarização sem perder de vista os hábitos e costumes do povo san. “A comunidade san aceita fixar residência, embora não perca o hábito de caçar. Os homens vão à caça e voltam ao lugar onde têm casas, lavras, animais e acesso à saúde e educação”, diz.
Um dos benefícios da fixação de residência é que as 50 crianças em idade escolar da Hupa frequentam, neste ano lectivo, aulas de iniciação numa sala de carácter provisório instalada na localidade.
O administrador da comuna de Chiquaqueia, Chiloia Barbante, avança que, no próximo ano lectivo, as autoridades vão destacar mais professores para as classes subsequentes, porque as aulas são inclusivas.
“Está em perspectiva a construção de salas com material local para as crianças em idade escolar. Aquelas que avançarem para as classes seguintes e com mais idade passam a frequentar as aulas em escolas construídas de raiz num raio de dois quilómetros”, garante.
O soba da comunidade san, Costa Gabriel, agradeceu a visita de entidades governamentais e acrescenta que o seu povo deixou de andar à procura de frutos silvestres e de animais para sobrevivência desde que está localizado na Hupa.
Costa Gabriel pediu a construção de um posto de saúde, salas de aula com carteiras para as crianças e alfaias agrícolas para os membros da comunidade, porque “o povo não quer mais sofrer.”
Acesso à terra
O coordenador da Ocadec afirma que a atribuição, em 2015, de um título de propriedade pelo Governo da Província da Huíla, confere à comunidade san a posse de uma parcela de terra que garante a fixação de residências e o desenvolvimento de actividades agrícolas.
A associação destaca que a parcela com centenas de hectares permite aos membros do grupo san desenvolverem actividades produtivas e terem o sentimento de pertença sobre terrenos onde podem encontrar a subsistência familiar. O activista comunitário sublinha que a terra disponível é ainda insuficiente, mas serve também para a recolha de recursos e alimentos naturais, como cogumelos, lenha e carvão e mel.
Benedito Kessongo realça que a comunidade san defende o espaço sem permitir o corte indiscriminado de árvores ou o desenvolvimento de outra actividade sem consentimento.
“Isto é positivo, porque todos estão empenhados na conservação do ambiente. Este título atribuído pelo governo provincial é um instrumento importante, porque confere o direito de posse e aumenta a confiança”, destaca.
O especialista disse que o modo de vida baseado na caça e na recolecção tinha expressão, quando havia vastos territórios para desenvolver essas actividades e garantir a sobrevivência das famílias desses grupos.
“A comunidade san está também em processo de mudança face às alterações climáticas e sociais que ocorrem nos últimos tempos. Estão a sedentarizar-se, mas este processo precisa do apoio de todos, porque o contexto é outro e há uma crise de meios de vida”, diz.
Produção agrícola
A caça e a recolecção começam a dar lugar à agricultura de subsistência, indicador considerado pela organização Ocadec como o início de uma nova era para o assentamento das famílias san.
Para incentivar as famílias san a fixarem residência, a associação estimula o Governo Provincial da Huíla a facilitar o acesso aos serviços sociais básicos, como saúde, educação e meios agrícolas.
A comunidade san começa a ganhar consciência e a reconhecer as vantagens de estar localizada. As actividades agrícolas ganham consistência, porque muitas famílias conseguiram reservas alimentares suficientes com uma safra.
“É positivo observar que a produção de uma determinada época consegue garantir alimento até à campanha agrícola seguinte. É nosso desejo assegurar que as famílias trabalhem o campo, semeando diferentes culturas, que garantam a alimentação e as sementes para a próxima campanha sem roturas”, refere.
O líder associativo explica que a sedentarização permite criar oportunidades para animais de pequeno porte. Está em fase experimental a criação de galinhas, cabritos, porcos, ovelhas e nalguns casos de gado bovino. “Tudo isso aumenta e diversifica os meios de produção de alimentos e faz com que os níveis de segurança alimentar aumentem. Alguns animais são vendidos e os pequenos negócios aumentam o poder de compra de produtos escassos nesta região e facilitam as deslocações para a cidade”, frisa.
A agricultura está a ganhar terreno. Com o apoio da associação e da administração municipal, membros da comunidade san trabalham numa extensão de terra de 100 hectares, onde predominam as culturas do milho, feijão, jinguba, massango e massambala.
Em fase experimental, a associação apoia algumas culturas de maior resistência, como mandioca, batata-doce e hortícolas. A actividade está a ser reforçada com a formação de membros da comunidade para a consolidação deste tipo de cultura e expansão da área.
O trabalho decorre em campos de demonstração, onde os beneficiários aprendem a trabalhar a terra, técnicas de sementeiras, épocas de cultivo e os compassos das diferentes culturas para boas colheitas.
A associação regista como sucesso a colheita de meia tonelada de cereais diversos por parte de algumas famílias san. “Isto é um dado satisfatório, porque, no passado, era quase impossível um san colher mais de 40 quilos”, afirma.
Amor sem tabus
As ligações entre os grupos étnicos bantu e san são antigas, mas antagónicas. Existem mitos pelo meio e tabus que, aos poucos, são vencidos e cria-se uma convivência harmoniosa entre comunidades com culturas e hábitos diferentes.
Afinal, o amor é capaz de romper barreiras e preconceitos. Os primeiros a romperam mitos e tabus são o casal Jorge Behena e Isabel Kuliateka, que confirmam um relacionamento amoroso entre bantu e san.
Jorge Behena, de origem bantu, saiu deDerruba (Quipungo) para formar família com a amada Kuliateca, da comunidade san, em Hupa. O relacionamento dura há mais de 10 anos. O casal tem dois filhos e leva uma vida sem episódios de superstição ou de azar. O sentimento falou mais alto e tudo ficou consumado entre um homem bantu e uma mulher san.
A relação tem o apoio dos anciãos, comunidades, autoridades administrativas locais e da Organização Cristã para o Desenvolvimento Comunitário.
O coordenador da Ocadec afirma que o relacionamento entre os dois é fruto da sensibilização de que san e bantu podem conviver sem problemas e representa um exemplo a ser incentivado, desde que haja consciência e vontade entre as pessoas envolvidas.
Benedito Kessongo diz que os mitos e tabus são contrários à inserção social dos san, como grupo em desvantagem e a uma convivência pacífica entre os dois povos habituados a viver sob complexos de superioridade e de inferioridade.
“Há uma ideia pejorativa de que o san não é pessoa, não trabalha e outros nomes discriminatórios. Por isso, estamos aqui para ajudar a romper as barreiras e a promover esta interacção entre os dois povos com culturas diferentes”, refere. A Ocadec tem microprojectos há 12 anos na região. No terreno, estão hoje 15 activistas, entre membros da comunidade que realizam as acções como voluntários.
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