Existem conflitualidades em grande parte do meio rural moçambicano por efeitos combinados da penetração do capital nas áreas do agro-negócio (commodities, florestas e game-farms), dos recursos naturais (unidades industriais e garimpo), do turismo e de infra-estruturas (estradas, portos e barragens), com a existência de fragilidades institucionais que estabelecem diferentes alianças entre si. Capital e Estado frágil terminam por serem funcionais reforçando-se mutuamente.
Moçambique é considerado como um dos Estados frágeis no mundo. Em síntese, e focando os aspectos essenciais, Estado frágil é caracterizado pelo poder não assegurar paz e segurança plena dos cidadãos, não respeitar e fazer respeitar os direitos humanos e as liberdades dos cidadãos, possuir instituições públicas com limitada capacidade de legislar, executar, fiscalizar e sancionar, ser vulnerável aos choques económicos externos, pouco resiliente a mudanças climáticas, sendo, portanto, gerador de conflitualidades sociais, potenciais ou reais.
Este texto assinala que, actualmente, existem no país e, em particular, em algumas zonas, conflitualidade de diferentes causas e níveis de gravidade que, caso se alastrem no território, poderão gerar instabilidade social, política e militar, sobretudo se for considerado que o país atravessa um complicado período eleitoral. Pretende-se, com este texto, com base em evidências obtidas em várias pesquisas recentes, alertar para a necessidade de medidas que reduzam ou eliminem esses vectores de conflitualidade.
O poder finalmente reconhece, ao fim de vários anos de estudos, a existência de conflitos de terras resultantes da usurpação por razões diversas. Esta realidade está bastante generalizada, sobretudo onde existe maior penetração de capital agrícola (corredor de Nacala e Alta Zambézia), florestal (províncias de Manica, Zambézia e Niassa), mineiro (Tete, Manica, Nampula e Zambézia), gás (Pande, Temane e bacia do Rovuma), areias pesadas (Chibuto e Moma), infra-estruturas (corredor da Nacala) e urbanização, sobretudo nos arredores das grandes cidades. Como se observa, esta realidade está bastante presente em grandes zonas do país. Relacionado principalmente com o capital agrário e mineiro, existem reassentamentos com habitações inapropriadas e para zonas de baixa produtividade agrícola, mais distantes dos centros de serviços e dos mercados, para além da separação física com elementos culturais e simbólicos das populações, criando rupturas na relação entre o Homem e os territórios.
A lei dos reassentamentos não é cumprida. As auscultações são realizadas de forma ad-hoc, sem a participação de grande parte dos cidadãos directamente interessada, sem formalização do acordado nas reuniões. Esta informalização permite, em caso de conflitos, opções discricionárias do Estado e dos investidores e incapacidade reivindicativa dos cidadãos negativamente afectados. Estado e investidores estabelecem alianças com as elites locais para que estas "acalmem" a população. Estas alianças criam relações de clientelismo pagas de diferentes formas: pagamentos monetários, assalariamento, viagens, distribuição desigual das "promessas" e reforço do poder local no exercício das suas funções e respectivas representações simbólicas.
A presença do capital no meio rural tem provocado, em muitos casos, redução das áreas de trabalho agrícola, do acesso a água e à floresta, diminuição da produção agrícola/alimentar, emprego abaixo do prometido e maioritariamente precário, salários baixos e maiores custos deA presença do capital no meio rural tem provocado, em muitos casos, redução das áreas de trabalho agrícola, do acesso a água e à floresta, diminuição da produção agrícola/alimentar, emprego abaixo do prometido e maioritariamente precário, salários baixos e maiores custos de mobilidade devido às distâncias. Estes aspectos têm provocado um empobrecimento da maioria da população abrangida. Uma pequena parte da população é empregue em tempo inteiro, muito poucos são abrangidos pela formação profissional.
Por outro lado, a implantação de investimentos cria expectativas de emprego e de oportunidades de negócios cuja verificação é muito inferior ao previsto. Surgem fluxos migratórios, crescimento caótico de aglomerados populacionais de média e grande dimensão, bolsas de pobreza e instabilidade social. Em bastantes ocasiões há manifestações e greves que são reprimidas pela policia e forças militarizadas.
Criam-se mecanismos de controlo dos movimentos de pessoas, (re)pressão política e prisões. Desenvolvem-se narrativas designando os activistas, jornalistas e pesquisadores de serem “agitadores”, pessoas contra o desenvolvimento, comandados por “mãos externas”, entre outras. Dificulta-se o acesso à informação e controlam-se os movimentos dessas pessoas quando realizam o trabalho no terreno. Existem sinais de existência de externalidades ambientais negativas. Poluição atmosférica contaminação da água e dos solos nas zonas mineiras, com particular gravidade na exploração de carvão e de ouro). Há indícios do surgimento de doenças típicas das actividades extractivas.
Existem provas de práticas próprias do trabalho forçado e de abusos contra os direitos humanos. É evidente a deterioração de estradas e pontes devido à sobrecarga de transporte de viaturas com tonelagem superior às suportáveis pelas vias de comunicação, o que é agravado pela intensidade do tráfego. São exemplos, as estradas nacionais entre Beira e Manica, entre Chimoio e Tete, Tete-Moatize, Tete-Songo ou entre Matola e Ressano Garcia. São bem conhecidas as perdas do capital físico da floresta, da fauna bravia e da capacidade piscatória por redução dos stocks de pescado.
Não obstante muitas destas realidades serem conhecidas e reveladas, foram realizadas poucas acções pelo Estado, tendo-se desenvolvido, até há poucos anos, uma recusa na aceitação das realidades e narrativas justificativas e de encobrimento das realidades. Existem também medidas para travar algumas ilegalidades e más práticas de reassentamentos, a exploração (corte) florestal, caça furtiva e tráfego de marfim e acções que procuram dar maior segurança de posse da terra. Foram apresentados casos conhecidos e confirmados de alianças entre Estado - capital - instituições locais da administração pública - elites locais e das comunidades, que encobrem, suportam e protegem (inclusive com repressão policial e securitária) actividades predadoras, práticas fora da lei de agentes económicos, abusos dos direitos humanos, perdas de património público, pobreza, migrações e deterioração ambiental.
Estas realidades são particularmente evidentes na província de Tete. A partir de finais da década passada, em torno do triângulo Tete-Moatize-Marara, concentrou-se a esmagadora fatia do investimento na província, centrado, sobretudo, na indústria extractiva ou a reboque deste sector (construção, transportes, hotelaria e restauração).
Contudo, o investimento em capital intensivo não foi acompanhado pela geração de empregos capaz de absorver a população crescente. Os investimentos não foram precedidos pela criação de instituições de ensino superior e formação profissional, pelo que grande parte dos postos de trabalho foram preenchidos a partir de recrutamento externo (oriundo de Maputo e Beira ou de fora do país). Descapitalizado e sem iniciativas, o empresário local não aproveitou as oportunidades de conteúdo local. Após a implementação dos projectos, assistiu-se a uma diminuição do preço do carvão no mercado internacional, paralisando-se actividades e agravando-se o problema do desemprego. A pobreza rural, agravada pelo prolongamento da estiagem e de falta de investimento no sector agro-pecuário, acelerou os movimentos migratórios para Tete e Moatize.
O crescimento urbano acelerado, num cenário de falta de oportunidades de trabalho, é potenciador de um aumento da insegurança pública e da criminalidade. Paralelamente, a imprensa local reporta um conjunto de situações de conflitualidade laboral, assim como fenómenos de corrupção e peculato. Entre as populações afectadas pela indústria extractiva, persistem os conflitos com as mineradoras, multiplicando-se as acções em tribunal. Em Marara, centenas de famílias continuam a aguardar por reassentamento, residindo nas áreas de produção e sujeitas a todos os impactos para a saúde.
Em Moatize, persiste o contencioso relacionado com indemnizações. O investimento não se traduziu na melhoria dos sistemas de transporte para os locais de produção, ou nos serviços de saúde e de educação, de água e saneamento, assim como no rendimento das populações. O último Inquérito ao Orçamento das Famílias demonstra que o rendimento mediano das famílias nos locais de maior investimento se apresenta dos mais baixos da província, inclusivamente abaixo do nível de pobreza. Este fenómeno é acompanhado por um aumento do descontentamento social e, ao longo de 2015 e 2016, o Norte de Moatize constituiu palco de intensos confrontos político-militares.
Cenários de grande investimento, acompanhado da manutenção de fenómenos que geram pobreza e agravam as desigualdades e a insegurança pública repetem-se nos últimos meses no Norte de Cabo Delgado. Este Destaque Rural tem como objectivo central despertar as instâncias do Estado para os riscos que podem advir destes factores de conflitualidade perdurarem no tempo e se alargarem no território nacional com a intensificação da penetração do capital em contexto de um Estado frágil. Reacções musculadas e repressivas em resposta a cenários de contestação social poderão agravar o descontentamento social, criando-se bases sociais de apoio de grupos político-militares que, um Estado frágil poderá ter dificuldades de gerir. O combate às desigualdades sociais, promovendo políticas com impactos sobre a diminuição da pobreza, deverá constituir um dos pilares dos centros de decisão do Governo nos próximos anos.
Esta notícia foi extraída do blogue Macua, Moçambique para todos, e foi escrita por João Mosca e João Feijó/ Observatório do Meio Rural