Foto: Jeso Carneiro/Flickr
As mudanças climáticas trazem impactos na saúde mental das pessoas, seja por meio das consequências diretas geradas, seja por traumas e estresses pós-traumáticos causados por eventos extremos e por disrupturas sociais. Os efeitos dessas interconexões, abordados na apostila Clima e Saúde Humana, publicada pelo ClimaInfo e de autoria da professora do Departamento de Saúde Ambiental da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo, Adelaide Nardocci, são sentidos de perto e gravados na memória de quem foi vítima de desastres – ou crimes – ambientais.
“Minha aldeia Naô Xohã foi afetada cultural, emocional e espiritualmente. Mentalmente porque não podemos mais caçar, nem ter o dinheiro da venda do artesanato para aqueles que vinham até a nossa comunidade. A gente também não pode mais se banhar no rio. Antes, tinha água potável diretamente da natureza, porque havia uma nascente dentro da nossa reserva. Ela foi morta. Isso afetou muito a gente. O rio tem um simbolismo muito grande na nossa vida”, refletiu o cacique Sucupira Pataxó, que vive às margens do rio Paraopeba (MG), impactado pelo rompimento da barragem de Brumadinho.
Já a líder indígena Kenya de Souza Donato – que, após o rompimento da barragem, passou a viver em Belo Horizonte, com alguns membros de sua comunidade – revela que o estilo de vida ao qual seu povo estava acostumado mudou totalmente. “Quase ninguém fazia uso de antidepressivo. Hoje, a maioria toma. Alguns, para ansiedade; outros, para dormir”, explicou. Kenya relatou que teve casos de pessoas que falavam muito que iam se suicidar. Para evitar, membros de sua comunidade se revezavam para ficar perto delas, acompanhando-as e apoiando-as. “Também tivemos casos de pessoas que antes viviam bem, mas agora tiveram de ser internadas em clínicas de habilitação (por uso de álcool e drogas). O que [casos como esses] a gente não tinha.” Kenya desabafou: “a gente está vivendo trauma por cima de trauma”.
Dados da Secretaria de Saúde de Brumadinho indicam que, um ano após o rompimento da barragem, o uso de antidepressivos cresceu cerca de 56%, e o de ansiolíticos, 79%. Registros de tentativas de suicídio saltaram de 29 para 47. O estudo “O Impacto do rompimento da barragem em Brumadinho, Minas Gerais, nos direitos humanos das mulheres” registrou que as 40 entrevistadas relataram aumento de ideação suicida e até mesmo casos de suicídio nas comunidades atingidas. Episódios de depressão e de insônia são comuns.
Faz-se urgente falar sobre o suicídio de forma acolhedora para salvar vidas, do mesmo modo que governos precisam dar assistência em saúde mental às comunidades vulnerabilizadas. Uma das populações que sofre com o racismo ambiental, a dos indígenas, têm a taxa de mortes por essa causa três vezes maior do que a média do país.
A mortalidade é alta entre os mais jovens: 44,8% dos casos envolveram crianças e jovens com idades entre 10 e 19 anos, de acordo com o Ministério da Saúde. Segundo Adelaide Nardocci, algumas comunidades indígenas do Mato Grosso, por exemplo, são expostas a altos níveis de agrotóxicos, que possuem substâncias que podem levar à depressão.
“Uma das formas mais eficazes de prevenir o suicídio é falando sobre o tema, estimulando o indíviduo a discorrer sobre os seus medos e anseios, demonstrando-lhe interesse e não diminuindo o seu sofrimento. Entretanto, em contexto indígena, os métodos irão variar e, em alguns casos, este tipo de ação não será possível. Sendo assim, o que se propõe é que, caso ocorra um suicídio, identifique-se pessoas que possam estar sendo afetadas pelo evento, oferecendo acolhimento e buscando construir uma rede de suporte comunitária”, indica o Manual de Investigação/ Notificação de Tentativas e Óbitos por suicídio em Povos Indígenas, do Ministério da Saúde.
Estresse pós-traumático causado pelo racismo climático
Em artigo assinado por Ruth Hollands, do EmpoderaClima, a pesquisadora menciona o mapeamento, realizado pelo Carbon Brief, com base em 130 estudos acadêmicos sobre saúde e clima, indicando que as mulheres são muito mais propensas a sofrerem doenças mentais relacionadas às questões climáticas.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) aponta que as mulheres são o maior grupo afetado pelo transtorno de estresse pós-traumático e com maior risco de ter angústia emocional e depressão após eventos extremos.
A co-fundadora e presidente da Associação Gris Espaço Solidário, a cientista social Joice Paixão, sucumbiu a uma crise da síndrome de burnout (exaustão extrema resultante de situações de trabalho desgastante), após um período de muita dedicação para dar assistência às vítimas do bairro da Várzea, em Recife (PE). A capital pernambucana foi duramente afetada, em maio de 2022, por chuvas extremas. Na ocasião, foi decretado estado de calamidade pública devido aos impactos das enchentes. No bairro da Várzea, uma pessoa morreu eletrocutada depois que a água atingiu a fiação elétrica, e uma família, que estava se afogando dentro de casa, foi salva por outros moradores que conseguiram quebrar as paredes, como relatou Joice.
Com o agravamento da crise climática, chuvas extremas deverão aumentar em frequência e intensidade. Só neste ano, Maranhão, Tocantins, Ceará, Acre, Amazonas, Pará, Rondônia e São Paulo já sofreram com chuvas torrenciais.
“Temos crianças e adolescentes aterrorizados com medo de sair de casa, da chuva e do rio. Não é possível que uma comunidade inteira precise ficar refém do medo, da ansiedade e da depressão por um fenômeno que acontece todos os anos”, desabafou Joice. Voluntários fazem sessões de terapia para crianças, adolescentes e mulheres. “A gente tem pessoas que tomam 900 ml de lítio por dia (medicamento para prevenção de episódios de depressão e estabilizador de humor)”, comentou Joice.
A eco-ansiedade – medo crônico de uma cataclisma ambiental pela observação do impacto aparentemente irrevogável da mudança climática e da preocupação associada pelo futuro da atual geração e da próxima – vem sendo apontada como um dos principais impactos das questões climáticas na saúde mental. A psicanalista Malu Gastal, membro da International Psychoanalytical Association (IPA), destaca que as pessoas que sofrem de ansiedade climática precisam perceber que a angústia da moradora de uma encosta é a mesma que a delas, só que em uma escala diferente. “Enquanto alguém pode perder tudo na próxima chuva, outras pessoas estão pensando no futuro do filho. Ambas [preocupações] são legítimas e são a mesma coisa, mas em escalas de tempo diferente”.
Malu alerta que é preciso pressionar os serviços de saúde mental a terem apoio às comunidades afetadas por grandes catástrofes. Diz, ainda, que os profissionais de saúde mental devem se organizar coletivamente para informar e formar seus colegas, além de pressionar as instituições públicas e privadas a agir. “Interferir nas políticas públicas, porque esses grandes eventos climáticos não vão apenas produzir novas necessidades de atendimento, como também vão mobilizar grande [demanda por] recursos”, analisou.
(*) Tatiane Matheus é jornalista e pesquisadora em Justiça, Equidade, Diversidade e Inclusão no Instituto ClimaInfo
Edição: Daniela Vianna
ClimaInfo, 18 de abril de 2023.
Esta matéria foi originalmente publicada em ClimaInfo.