Célia Xakriabá (dir.), Angela Kaxuyana e Sonia Guajajara: mulheres indígenas guerreiras em luta por seus direitos e territórios. Foto: Greenpeace
Célia Xakriabá mal tinha deixado a infância quando começou a acompanhar as lideranças da Terra Indígena Xakriabá (MG) em mobilizações nacionais em prol de seu povo. Tinha somente 13 anos quando entrou pela primeira vez no Congresso Nacional para fazer um pronunciamento, recorda, e começou a ouvir de seus parentes que ainda seria a futura deputada dos Xakriabá.
Célia, 19 anos depois, filiada ao PSOL, vê esse projeto se concretizar. Ela se tornou a primeira indígena da história do Estado de Minas Gerais a ser eleita deputada federal, com mais de 101 mil votos. A partir de 2023, ela assumirá um assento na Câmara ao lado de outros seis parlamentares que se autodeclaram indígenas, um recorde, com destaque para Sonia Guajajara, também do PSOL, que foi escolhida para representar o Estado de São Paulo.
“Nós chegamos até aqui porque decidimos que não são os outros que vão falar quando é a nossa hora”, ela sublinha. “A nossa hora é quando já não der mais para suportar o genocídio [e] o etnocídio. Nossa hora é agora”.
A vitória de Célia é fruto de um esforço coletivo do movimento indígena para expandir o número de candidaturas dos povos originários e ocupar a política institucional, ao qual se deu o nome de ‘Bancada do Cocar’. Em oposição à bancada ruralista, essa frente surge na perspectiva de barrar ataques ao meio ambiente e incidir pela demarcação de territórios e pela defesa dos direitos dos povos da floresta.
“Nós não queremos ser somente eleitores. Também temos condições de sermos votados e vamos fazer daquele Salão Verde um reflorestar da política com as nossas ideias e a nossa presença”, diz.
Um dos principais desafios que ela quer superar é justamente o ‘racismo da ausência’, isto é, a ideia equivocada de que o lugar do indígena é somente na aldeia ou numa “banquinha de artesanato”.
“Eles decidiram que era esse lugar para nós e nós decidimos passar com o nosso cocar. [Agora], é abrir caminho, porque junto conosco, eu quero que venham muitas outras”.
Célia Xakriabá assume o cargo na expectativa de semear esperança e reconstrução após um acirramento dos ataques aos povos indígenas, que foram colocados na mira do presidente Jair Bolsonaro (PL) e do próprio Congresso Nacional.
Por isso, seu mandato tem como prioridade três pilares, todos construídos coletivamente com as comunidades indígenas e tradicionais de Minas Gerais: cultura viva, com o fortalecimento de políticas de preservação da memória e do patrimônio cultural e democratização do acesso à cultura; educação territorializada, com reconhecimento às sabedorias ancestrais e letramento étnico-racial de profissionais da educação básica; e justiça socioambiental, com demarcação de Terras Indígenas e titulação de territórios quilombolas, enfrentamento à mineração predatória e reformas agrária e urbana.
“[O governo Bolsonaro] usou a estrutura de poder para anunciar o ‘passar da boiada’. Como a gente vai pensar em possibilidade de futuro se existe um governo ecocida na centralidade política?” questiona. “É momento de retomar uma democracia para a vida”.
Apontando para um possível governo Lula, ela reforça também a necessidade de pensar a paralisação de atos normativos que promovem o retrocesso ambiental e territorial e o desrespeito aos direitos dos povos originários, que, ela calcula, já chegam a 250 textos. E garante que, caso essa perspectiva de um novo governo do ex-presidente se realize, vai seguir vigilante dentro do Congresso.
“Vai ser um mandato para a luta”, pontua. “A nossa representatividade não significa que os problemas estarão resolvidos. Pelo contrário: vamos ter uma voz e uma possibilidade de decisão com a caneta, mas a mobilização é o que nos sustenta”.
Minha escola é a luta
A política institucional já faz parte da vida de Célia Xakriabá. Nos últimos quatro anos, atuou como assessora parlamentar da deputada federal Áurea Carolina (PSOL), eleita por Minas Gerais em 2018. Antes, havia trabalhado na Secretaria de Educação de Minas Gerais, onde colaborou com o desenho de políticas públicas para a educação escolar diferenciada e com a abertura de escolas indígenas e quilombolas e rurais em todo o estado.
Foi Áurea, inclusive, que primeiro convocou as lideranças Xakriabá a lançarem uma candidatura para a Câmara federal, ainda no pleito de 2018. Célia recorda, porém, que ainda não era o momento.
Pensando nas eleições de 2022, os Xakriabá passaram a discutir o fato de que muitos dos parlamentares que ajudavam a eleger não tinham os interesses do povo como verdadeiras prioridades. Alguns votavam, por exemplo, a favor da mineração ou contra políticas para a saúde indígena.
Decidiram, então, que havia chegado a hora de se unificar em torno de um nome que realmente os representasse. E esse nome era o de Célia.
“Os territórios indígenas apoiaram nossa candidatura e muitas das comunidades quilombolas de Minas Gerais [também]. Só em Belo Horizonte, eu fui a terceira mais votada. As pessoas estão entendendo a nossa emergência”, comenta a deputada eleita.
Em 2023, Célia Xakriabá carregará até Brasília uma bagagem recheada pela vasta experiência na área da educação e no engajamento junto ao movimento indígena. “Eu nunca percorri caminhos da velha política brasileira. Minha primeira escola foi e continua sendo a luta”, reafirma.
Célia sempre esteve muito presente na vida política do território e firmou suas primeiras relações com a luta junto a outros povos e comunidades tradicionais do norte de Minas Gerais. A proximidade e a troca de experiências com territórios quilombolas, geraizeiros, vazanteiros e outros mais tarde desaguou na Articulação Rosalino Gomes de Povos e Comunidades Tradicionais.
Ela lembra ainda que sempre estudou em escolas indígenas, e por meio delas, criou uma forte relação com o território e com as raízes culturais do seu povo. A experiência com a educação diferenciada a motivo a se tornar educadora.
Célia integrou a primeira turma do Curso de Formação Intercultural para Educadores Indígenas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e, depois de formada, retornou ao território Xakriabá para atuar como professora de Cultura. “É importante pensar em uma educação territorializada, onde nosso corpo se desloca para outros lugares [além da sala de aula],” diz. “E assim também é pra mim a política: o parlamento se deslocando para onde está a luta. E eu pretendo fazer exatamente isso”.
Mais tarde, Célia tornou-se a primeira mestra do seu povo, se especializando em Desenvolvimento Sustentável na Universidade de Brasília (UnB), e a primeira indígena a ingressar no doutorado da UFMG.
O pioneirismo é uma motivação para continuar lutando. “Nós não nos sentimos mais felizes por sermos as únicas. Temos a responsabilidade redobrada”, afirma.
Mulherizar a política
Quando era jovem, Célia gostava de observar as mulheres do seu povo e questionar de que maneiras elas estavam contribuindo para a luta coletiva dos Xakriabá. As respostas que recebia demonstravam que as mulheres ainda não tinham um grande protagonismo e notoriedade dentro do movimento indígena, mas desde sempre eram imprescindíveis para a organização social do povo.
“Elas falavam: 'a única coisa que eu tinha que fazer era abrir a roça para sustentar meus filhos e também sustentar a cultura'”, recorda. “São mulheres que se tornam protagonistas ao se perceberem como pilares. Então, o pilão que pisava o milho não apenas alimentava os filhos, mas sustentava o território,” ela escreve em sua dissertação de mestrado.
“E aí de repente eu começo a repensar esse lugar do que é a política”, comenta. Olhando ao seu redor, ela notou, por exemplo, que a companheira de seu tio não tomava decisões no centro da aldeia, mas orientava o marido de dentro de casa. Percebeu, ainda, a potência do trabalho de sua bisavó, que era benzedeira, e de suas tias, parteiras. “Quem disse que trazer à vida de uma maneira tradicional, humanizada, não é fazer política? Eu entendo política quando as pessoas estão participando, dialogando".
É justamente esse histórico que ela pretende trazer para o Congresso, em um esforço de "mulherizar" a política, um compromisso antigo e que ela fortalece também através da Articulação Nacional das Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade (Anmiga), que ajudou a fundar.
“O Brasil começa por nós, mas não existia a nossa presença lá”, diz. Ela espera dar continuidade ao legado de Joenia Wapichana, que não conseguiu se reeleger em 2022, e para isso, conta com o apoio e a força de sua colega no movimento indígena na bancada do cocar, Sonia Guajajara.
Ainda que possa parecer pouco ter somente duas eleitas, Célia garante que a presença de duas mulheres indígenas alinhadas às pautas coletivas do movimento na Câmara tem um significado diferente, de muita potência. “Não se trata de quantas pessoas [estão lá], mas de quantas morreriam se nós estivéssemos de braços cruzados,” pontua. “E se nós somos minoria do lado de dentro, nós vamos convocar a maioria do lado de fora!”
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