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News & Events O fim do paraíso do gado. Como a seca e pecuária comercial expõem dezenas de milhares de pessoas à fome em Angola
O fim do paraíso do gado. Como a seca e pecuária comercial expõem dezenas de milhares de pessoas à fome em Angola
O fim do paraíso do gado. Como a seca e pecuária comercial expõem dezenas de milhares de pessoas à fome em Angola
Fonte: Jornal Económico
Fonte: Jornal Económico

Por Jéssica Sousa


Este relatório documenta como, nas últimas duas décadas após a guerra civil, a invasão de criadores comerciais de gado nas pastagens tradicionais da Tunda dos Gambos e Vale do Chimbolela tem erodido a resiliência económica, social e cultural, nomeadamente a segurança alimentar, entre os povos Vanyaneke e Ovaherero em Gambos, Angola.


A fome e a privação de alimentos são o problema mais grave de direitos humanos que a Amnistia Internacional (AI) encontrou entre os pastores Vanyaneke e Ovaherero no município dos Gambos, província da Huíla, Sul de Angola.


O leite é apontado como o produto mais afetado, sendo também o mais importante para a manutenção da vida nestas comunidades. De acordo com o relatório da AI, existe uma forte escassez deste alimento pois a sua produção diminuiu muito devido à falta de pastagens suficientes devido à seca e à pecuária comercial. Segundo o governo, existem actualmente 46 criadores de gado comerciais, que ocupam 2.629 km2 das terras mais férteis, deixando apenas 1.299 km2 de pastagens para os criadores de gado tradicionais. Isto significa que 67% das terras estão ocupadas por criadores de gado comerciais, deixando as comunidades pastoralistas com apenas 33% das terras.


Segundo a Amnistia, são várias as famílias pastoralistas que enfrentam grandes dificuldades para produzir comida para si e para o seu gado, sendo obrigadas a comer folhas selvagem como alternativa ao combate à fome.


 


O relatório “O fim do paraíso do gado: Como os desvios de terras para explorações pecuárias minou a segurança alimentar nos Gambos” redigido pela Amnistia Internacional, foi divulgado, esta terça-feira, analisa a crise alimentar que foi impulsionada pela pecuária comercial e a seca extrema, apontando também as consequências que se têm agravado nas últimas duas décadas após a guerra civil. Para além de alertar para a falta de alimento, o relatório denuncia também a falta de assistência ou compensação por parte do governo angolano.


 


Escassez de leite e falta de alimento


 


No extremo sul da província da Huíla, no Sul de Angola, encontra-se o município dos Gambos, lar de Tunda e Chimbolela, os costumeiros campos de pasto comuns aos pastores da região.


 


A pesquisa da Amnistia Internacional descobriu que o leite é o produto mais importante para sustentar a subsistência na região dos Gambos. Tal como com o resto dos angolanos do Sul, esta comunidade é conhecida pelos seus criadores de gado tradicionais, também chamados pastoralistas, e faz parte da região leiteira.


 


Estes pastores contaram aos investigadores sobre a falta de pastagens suficientes após a introdução da pecuária comercial. Como resultado, grandes extensões de terra foram vedadas, levando a que o gado passasse fome, produzisse menos leite, e a que as famílias consumissem menos leite, o que por sua vez resultou em fome e desnutrição.


 


Com a falta de leite para consumo doméstico, tanto os adultos como as crianças aparentavam estar fisicamente magros, adoentados, fracos e cansados. À Amnistia contaram que agora comiam lombi (folhas selvagens) como a sua principal fonte de alimento. Muitas pessoas contaram que sofrem de vómitos e diarreia e contraíram também doenças de pele, tais como a sarna, devido à escassez de água e às más condições de higiene.


 


“Para uma vaca produzir leite, precisa de comer muita erva de qualidade, erva com boas vitaminas. Sem erva de qualidade suficiente, é impossível produzir leite suficiente para bezerros e humanos. Como podem ver, estão magras. Têm fome. Isso significa que as nossas crianças já não bebem leite suficiente. As crianças por aqui costumavam ser gordas, reluzentes e saudáveis. Tinham peles bonitas e brilhantes. Agora são magras e baças. É de partir o coração. Já não há leite suficiente. Por isso, nós, os adultos, desistimos de beber leite para que as crianças ainda possam ter leite. Como podem ver, nós não parecemos saudáveis e fortes como costumávamos ser. Nós somos magros e fracos”, contou um pastor à Amnistia Internacional. 


 


Governo angolano fecha os olhos ao crescimento dos fazendeiros comerciais


 


Desde o final da guerra civil, em 2002, as famílias pecuárias viram os produtores comerciais de gado a ocuparem a  Tunda dos Gambos e Vale do Chimbolela sem qualquer processo para procurar o seu consentimento livre, prévio e informado. Segundo eles, todos os fazendeiros comerciais de gado seguiram um método semelhante de operação. Chegaram sem anúncio, reclamaram as terras e vedaram o espaço sem consulta, compensação e avaliação do impacto ambiental.


 


De acordo com a Amnistia, os criadores comerciais de gado apropriaram-se de 67% das terras de pastagem comuns naquela região, nomeadamente as melhores terras de pastagem comunitárias, que tinham historicamente mitigado o impacto da seca entre os pastores da região.


 


Consequentemente, as famílias pastoralistas ficaram com terras insuficientes e improdutivas para as suas colheitas e para alimentar o gado, prejudicando a produção de leite, queijo, iogurte e carne, o seu principal meio de subsistência.


 


Ambas as regiões são terras comunitárias rurais que pastoralistas do Sul de Angola – incluindo as províncias do Cunene, da Huíla e do Namibe – têm usado durante séculos como pastos comuns. No entanto, apesar deste facto, o governo angolano permitiu que os criadores comerciais de gado ocupassem a Tunda e Vale do Chimbolela sem qualquer forma de compensação, violando claramente a legislação angolana. Nos termos da constituição do país, devem ter lugar consultas plenas com as comunidades afetadas antes de as terras lhes serem retiradas. Contudo, o governo angolano permitiu que os criadores de gado comerciais ocupar pastagens das comunidades pastoralistas sem qualquer consulta.


 


“A ocupação [apropriação] da Tunda dos Gambos e do Chimbolela começou no final dos anos 1990. Após a guerra, em 2002, a ocupação [apropriação] intensificou-se, e vimos cada vez mais fazendeiros chegarem e ocuparem, cada vez mais terra de pastagem vedada. Todos estes não falaram connosco, de todo. Simplesmente vieram e colocaram cercas. Não fomos consultados; como se não estivéssemos ali. Para eles, nós somos invisíveis. Não somos nada”, contou um agricultor à Amnistia.


 


Amnistia pede ação legal e inquérito aos ocupantes


 


A Amnistia Internacional deixou clara a necessidade de apelar ao governo angolano para que tome medidas imediatas para resolver a questão da insegurança alimentar nos Gambos e que fazer reparações perto das comunidades afectadas.


 


Para além disso alerta para a urgência em conduzir um inquérito para investigar como grandes partes da Tunda dos Gambos e do Vale do Chimbolela foram concedidas para a pecuária comercial desde o fim da guerra civil, em 2002, sem nenhuma condição legal. “O governo angolano permitiu que os fazendeiros retirassem aos/às pastoralistas as suas terras de pastoreio sem consentimento livre, prévio e informado”, conclui no documento oficial da organização.


 


Este texto foi originalmente publicado em O Jornal Económico