Indígenas apurinã em área incendiada na Terra Indígena Valparaíso, no Amazonas, ainda não demarcada
Imagem: Denisa Starbova
Por Bárbara Dias e Valéria Pereira Santos, especial para a coluna
O fogo tem sido uma arma usada contra povos e comunidades tradicionais como parte do processo de grilagem, diretamente associado ao desmatamento, o que tem beneficiado o agronegócio e a mineração. Se, antes, as áreas públicas eram os maiores alvos, hoje, as terras indígenas se tornaram um dos objetivos principais.
É o que aponta um dossiê lançado pela articulação Agro é Fogo (que envolve mais de 30 organizações, entre elas a Comissão Pastoral da Terra, o Conselho Indigenista Missionário, a Via Campesina) nesta semana.
Do início de 2021 até novembro, 19.054 alertas de incêndios em terras indígenas foram detectados somente na Amazônia, afetando 22.337 quilômetros quadrados. Em 2020, haviam sido 16.848 alertas, envolvendo uma área de 29.694,58 km2.
Os incêndios criminosos ocorreram em todo o território nacional. Isso é resultado da intensificação de políticas anti-indígenas e anti-demarcação do governo Jair Bolsonaro, articuladas pela bancada ruralista no Congresso Nacional e endossadas por partidos aliados. O governo joga combustível garantindo a impunidade.
Dentre os ataques, vale ressaltar o caráter sistemático do uso do fogo. No Mato Grosso, a Terra Indígena Marãiwatsédé, do povo Xavante, que há mais de 40 anos vive intenso conflitos com grileiros e invasores, ocupou o quinto lugar em número de queimadas já em 2019 e está na quarta posição entre as terras indígenas mais desmatadas.
Este ano, outros territórios xavante ocupam posição de destaque no triste ranking de focos de incêndios, entre eles as TIs Pimentel Barbosa (4o lugar, com 450 focos), Parabubure (5o lugar, com 417) e Areões (6o lugar, com 370).
Já a Ilha do Bananal, casa de mais de 5 mil indígenas, incluindo isolados, ocupa o primeiro lugar, com a TI Parque do Araguaia e a TI Inawebohona somando, juntas, 2.015 focos.
No Pantanal, a TI Kadiwéu (MS) é uma das terras indígenas mais incendiadas dos últimos anos. Em 2019, a área sofreu graves incêndios, que se repetiram em 2020, alcançando 5.311 focos - que destruíram mais de 211 mil hectares, quase 40% do território. Neste ano, é o segundo território com mais focos de incêndio (860) até agora.
Ataques incluíram locais considerados sagrados pelos indígenas
Soma-se a essa realidade, ainda, a intolerância religiosa e o ódio. No Mato Grosso do Sul, sete casas de reza foram incendiadas em 2021, destruindo elementos centenários da cultura. O mesmo aconteceu com duas casas de reza do povo Guarani Mbya, no Rio Grande do Sul.
A violência pelo fogo também parte da mineração ilegal. Em Jacareacanga (PA), houve dois ataques: a associação de mulheres Munduruku Wakoburum foi incendiada por garimpeiros em março deste ano e, em maio, colocaram fogo na casa da liderança Maria Leusa Munduruku, causando momentos de terror entre os moradores da aldeia e familiares da liderança.
A insegurança dentro dos territórios aumentou quando, em 2017, a Advocacia Geral da União (AGU) estabeleceu a tese inconstitucional do marco temporal como parâmetro de demarcação de terras, ferindo os direitos originários desses povos e inviabilizando a garantia jurídica de seus territórios. A tese ainda será julgada pelo Supremo Tribunal.
O ano de 2020 contou com o maior número de conflitos no campo já registrados pela CPT. Das 81.225 famílias que tiveram seus territórios invadidos no ano passado, 71% delas eram indígenas.
Além disso, projetos de lei como o PL 490/2007 (que transfere para o Congresso a demarcação de novas terras indígenas), o esvaziamento e sucateamento dos órgãos indigenistas e ambientais do governo, bem como sua mudança de finalidade, pioraram a situação.
Os invasores vislumbram, nessas medidas, a possibilidade de legalização de suas ocupações ilegais e a expropriação de quem sempre ocupou a terra de forma tradicional. Se isso se concretizar, o Brasil perderá o que resta de suas florestas.
(*) Bárbara Dias é secretária executiva da articulação Agro é Fogo e doutoranda em Antropologia Social no Museu Nacional na UFRJ e Valéria Pereira Santos é articuladora da Comissão Pastoral da Terra no Cerrado e mestra em Demandas Populares e Dinâmicas Regionais pela UFT.
Esta matéria foi originalmente publicada na coluna de Leonardo Sakamoto para UOL