Depois do abandono, o regresso à terra e à agricultura, arriscamo-nos a dizer, é todo ele feito, seja por quem for, desprovido dos laços com o território e, como tal, desprovido dos laços de solidariedade e da vida comunitária outrora forjada nos campos.
O olhar de Catarina Eufémia, gravado no mural que celebra a sua mitologia em Baleizão, parece cruzar-se com o olhar da mulher de nome desconhecido do Hindustão que por ali passa. Talvez o olhar fugaz que a trabalhadora rural dos olivais e amendoais intensivos dos campos de Beja dirige ao rosto de Catarina questione que mulher e de que emancipação fala o mural. Nesse instante fotográfico, o olhar já não se cruza com o cravo imprescindível à memorabilia comunista. Provavelmente, nem tamanhos questionamentos e simbologias assolam a trabalhadora migrante. O seu mundo está antes ligado por um fio a um smartphone. Do outro lado, a milhares de quilómetros, estará uma voz familiar e uma condição de miséria que a levou a atravessar meio mundo em busca das migalhas da fatia do bolo que ditou que as muitas Catarinas Eufémias do hemisfério sul não tenham direito a uma vida digna. Muito menos que os seus nomes sejam recordados pelas múltiplas lutas que povoam a sua mera sobrevivência quotidiana.
A fotografia de André Paxiuta sugere o ponto de partida desta crónica. Em primeiro lugar, uma inquietação: o desencontro entre a migrante explorada nos grandes olivais de Beja e um mural que se revela afinal um muro de indiferença que percorre as vilas e campos do Alentejo para com aqueles que de fora aqui vêm trabalhar à jorna. Depois, uma pergunta que cedo se revela um equívoco e uma ilusão: como lidam os trabalhadores rurais alentejanos com a vaga dos trabalhadores rurais migrantes?
INQUIETAÇÃO
Se em números anteriores do Jornal Mapa abordámos a situação laboral de escravatura e as lutas específicas dos migrantes nos campos do Sul, regressamos para retratar um território que vive silenciosamente numa tensão social fracturante. A pergunta atrás formulada é equivocada porque a condição de trabalhador rural alentejano há muito que desapareceu, e ilusória porque a questão não se coloca verdadeiramente como prioridade a quem habita o território. E, quando é posto em praça pública, o problema corre o risco de afundar-se no preconceito racista. A inquietação persiste ao não nos depararmos com uma resposta positiva, possível e desejável. Uma resposta de solidariedade expressa entre os olhares cruzados dos filhos e netos, nascidos da geração de Catarina Eufémia, e os migrantes sem nome do Hindustão, do Leste europeu ou da África subsariana.
Situemo-nos antes de mais nesta paisagem forjada pelo homem e pelo trabalho rural. Afinal de contas, a presente e brutal transformação dos campos alentejanos apenas pode ser comparada com a conquista humana das charnecas, matos e florestas que moldou há cem anos atrás o Sul de Portugal nas planuras do celeiro da nação. Paisagem que hoje desaparece, repetida a avidez das grandes extensões de terra, numa transformação programada e apoiada com dinheiros públicos, em nome do lucro circunscrito proporcionado pelas culturas permanentes do olival e amendoal.
O que acontece a uma velocidade estonteante. Num fechar de olhos, perdemos os sentidos e acordamos emergidos numa outra terra qualquer. O olhar ferido pelo sol não vislumbra mais a planura e os montados que a salpicavam. A promessa foi cumprida. O Alqueva abriu as veias da sua água ao regadio da agroindústria de Évora a Beja. E onde o sol se põe, na aragem da costa alentejana, é o reflexo plastificado das estufas que fere a vista a caminho das falésias que se esboroam. É esse o novo Alentejo e todos sabíamos que aí vinha. Décadas de promessas, progresso e betão concretizadas. Surpresa mesmo, somente o assomo da vertigem com que de um dia para o outro o mar é em terra extensões de plástico e as encostas dos barrancos se vêm esquadrinhados em ruas de olival e amendoal, enevoados pela química, e as margens das ribeiras cortadas a perfil recto convidam o solo a conhecer definitivamente a sua aridez.
MARAVILHOSO MUNDO NOVO…
A Maravilha Farms é uma das multinacionais norte-americanas de frutos vermelhos, junto com a Driscool’s instalada em Odemira. Há 10 anos em Portugal, representa cerca de 2% do universo da californiana Reiter Affiliated Companies (RAC). Actualmente, os lucros destas multinacionais ascendem a perto de 150 milhões de euros por ano. Com cerca de 150 hectares de produção, a Maravilha Farms prevê duplicar as estufas de framboesas, amoras e mirtilos, para 300 ha, anunciando um aumento de mão-de-obra de 60 a 70% dos 700 trabalhadores contabilizados (15% deles portugueses). Números à parte da mão-de-obra sazonal, que representam no fim de contas a espinha dorsal desta indústria. O plano de investimento da Maravilha Farms («Ambição 2021») fora apresentado em maio de 2017 nas instalações da empresa em São Teotónio, numa cerimónia presidida pelo primeiro-ministro António Costa.
Contrariando a ambição desse mar de estufas, o processo de avaliação ambiental, em fase final à data em que escrevemos, aponta um conjunto de indicações desfavoráveis ao Projeto Agrícola da Maravilha Farms a desenvolver em 84 ha de Alcaria Nova (São Teotónio), incluindo a base logística e administrativa da multinacional, centralizando as outras unidades produtivas já existentes na envolvente. Em causa está a violação dos princípios de conservação do Sítio de Importância Comunitária Costa Sudoeste e do próprio Parque Natural do Sudoeste Alentejano e Costa Vicentina, espelhando uma preocupação crescente com esta ocupação excessiva no Perímetro de Rega do Mira.
Mas, para lá da evidência de crime ambiental, a expansão das estufas trouxe inevitavelmente ao de cima a questão social. Questão centrada sobretudo na habitação e na interacção social de diferentes comunidades, desde que há mais de uma década atrás chegaram a São Teotónio levas de búlgaros, hoje ofuscados pelos milhares de tailandeses, nepaleses, indianos e bengalis que ocupam toda e qualquer casa e casebre. O novo projeto agrícola previa inicialmente a construção de 19 edifícios para alojamento de 16 trabalhadores cada um, um refeitório, uma lavandaria e um posto de saúde. Contudo, em janeiro passado, a Maravilha Farms dá o dito por não dito e excluiu simplesmente a criação de espaços e equipamentos destinados aos trabalhadores temporários, quando questionada pela CCDR Alentejo relativamente ao escasso número previsto e ao compromisso social da empresa.
Foto de André Paxiuta/Jornal Mapa
Quando só este projeto significará cerca de 1050 novos trabalhadores em época de colheitas, foi recebida com evidente incompreensão a conclusão do estudo de impacte ambiental de que não haveria impactes com significado sobre os fatores socioculturais locais. Em sentido contrário, a freguesia local tem vindo a apontar uma série de dificuldades inerentes ao aumento de pressão sobre os serviços públicos, desde a recolha de resíduos, saneamento básico, água, luz e comunicações. E neste cenário há quem acentue ainda que a corrida ao alojamento colide com o alojamento temporário do turismo da costa alentejana. Em ambos os casos, o ganho dos proprietários locais, à custa com os migrantes de casas sem condições, veio criar uma crise para a restante população incapacitada em suportar os custos de alojamento.
Numa freguesia que registava 6439 residentes nos censos de 2011, só o número de atestados de residência entre 2016, 2017 e 2018 evoluiu de 1758, 2788 a 3767 pedidos. Números que não reflectem fixação de população, mas sim a rotatividade dos migrantes, ditada por verdadeiros cartéis de trabalho precário, que operam legalmente em empresas de trabalho temporário. Essa demanda de centenas de trabalhadores para as estufas de frutos vermelhos espelha a constante da alma capitalista: lucros astronómicos garantidos por mão-de-obra barata e explorada. Uma condição inquestionada enquanto funciona como chantagem a uma possibilidade migratória que é mais favorável em Portugal para garantir uma passagem legal ao sonho europeu.
O certo é que esta miragem encarniçada do plástico não atraiu apenas multinacionais, mas envolve igualmente os pequenos proprietários de terras no sudoeste alentejano que instalam estufas com o retorno garantido pela Driscool’s e congéneres, recorrendo em igual medida ao anónimo recrutamento dos migrantes. Numa terra que acompanhou a tendência regional da rejeição da terra, enquanto actividade económica, pela terciarização da população local nos serviços públicos ou no sector turístico, há um regresso à terra: plastificada, na serventia e dependência da monocultura e pactuando com a desgraça dos outros.
ESTUFAS E FESTIVAIS
Lado a lado, distintas comunidades vivem entrincheiradas. Com os búlgaros e as populações de leste, que em boa parte acabaram por se fixar, os lugares comuns da criminalidade são mais acentuados, ainda que hoje mais esbatidos, do que os juízos populares para com as populações tailandesas e do Hindustão. Impronunciado existe um racismo encapotado ou latente na separação dos «locais» com as muitas populações estrangeiras de Odemira, um dos mais extensos municípios da Europa. Numa população de 26 104 habitantes (Censos de 2011), conforme dados da autarquia em 2017, 18,8% da população residente era migrante legalizada (4 912, na maioria asiáticos), constituindo 57,8% dos migrantes registados no Distrito de Beja. Já nesse ano a revista Visão apontava números não-oficiais de perto de 40 mil imigrantes.