Entrevista Com Juana Segundo: da chacina de La Bomba à luta pelo território ancestral do povo Pilagá | Land Portal
Juana Segundo tem 49 anos e é Pilagá. Ela é descendente de sobreviventes do genocídio planejado e executado pelo Estado em 1947 em La Bomba, atual cidade de Las Lomitas, Formosa, na Argentina. Atualmente, Juana mora na Comunidade Penqolé, na mesma província. Juana tem várias causas judiciais. Ela é acusada de usurpação e obstrução da circulação de transportes e serviços públicos ( bloqueio de estradas).  
 
No ano 1947, várias famílias moravam em La Bomba, território usurpado pelo Estado argentino, à beira do leito de um rico seco, localizado a poucos metros da cidade Las Lomitas. Nesse lugar (atual território das Comunidades Penqolé e Oñedié) o cacique Oñedié, Pablito Navarro, nascido em Pozo Molina, tinha uma chácara. Tonkiet, cujo nome em espanhol era Luciano Córdoba, “um homem que curava sem cobrar”, também vinha de Pozo Molina e, como Oñedié, pertencia ao grupo dos kedokopí ou “povo da onça pintada”. As famílias continuaram chegando e, com o passar dos dias, somaram centos de pessoas, que ocuparam a beira do leito do rio seco. Em pouco tempo, a numerosa reunião foi alvo do receio das autoridades militares, religiosas e civis, responsáveis pela vigilância e pelo controle do então Território Nacional de Formosa. As famílias foram intimadas a abandonarem o local. Oñedié, cujos conhecimentos da língua espanhola lhe permitiam agir como tradutor, se destacou naqueles dias como mediador entre os pilagá e os funcionários civis  e militares. No fim de setembro, a vigilância diária do esquadrão foi intensificada. O comando mandou guardas para revistar a ocupação e confiscar espingardas, facas e facões, que foram guardados em um depósito do esquadrão 18 da Gendarmaria. A intromissão do Estado policial se deu por meio da vigilância e da apreensão das ferramentas e armas usadas para caça, fato que causou prejuízos à economia do grupo. Nos dias prévios aos primeiros fuzilamentos, os órgãos estatais tentaram diversas estratégias para despejar as famílias do local e levá-las para as colônias indígenas de Bartolomé de las Casas e Francisco Muñiz.  
 
Em 10 de outubro de 1947, crianças foram avisadas de que estava se gestando uma repressão, que aconteceria naquele mesmo dia. De tarde, os policiais dispararam suas metralhadoras pesadas e suas armas contra a multidão, que avançava com Bíblias nas mãos. Embora muitos tinham começado a fugir, alguns ficaram, enfrentado os fuzileiros com suas Bíblias, rezando à viva voz e supondo que por isso os guardas não iriam atirar contra eles. Porém, por volta das 18h00, foi dada a ordem de abrir fogo e homens, mulheres e crianças caíram feridos e foram mortos pelos primeiros disparos.
 
O tiroteio estendeu-se por horas e disparos foram ouvidos durante a madrugada. Naquela noite, começaram as perseguições contra vários grupos que fugiam pelo mato para suas comunidades de origem. Também foram queimados os cadáveres daqueles que tinham sido mortos naquela tarde, cujas cinzas foram espalhadas nos dias posteriores.  De acordo com testemunhos dos sobreviventes da Chacina, muitos dos que moravam naquele lugar não voltaram porque fugiram pelo mato. E foi a partir desse momento que a Gendarmaria Nacional usurpou o local.
 
Atualmente, os integrantes das Comunidades estão reivindicando o território ancestral que lhes pertence e sendo vítimas de processos judiciais, por parte do Estado nacional, da Província e dos setores privados. Em abril deste ano, entrevistamos Juana Segundo no contexto do Primeiro Parlamento de Mulheres Originárias das 36 Nações, em Enseada, La Plata, organizado pelo Movimento de Mulheres Indígenas pelo Bem Viver de Argentina
 
Ana María e Paula: Juana, o que você pode nos contar sobre a situação na sua comunidade e sua atual judicialização?
 
Juana: Eu prefiro começar pelo tema da chacina; é muito importante para mim porque sou filha desse povo que quase não existia. Somos minoria, por causa da chacina que aconteceu quando a gente nem mesmo existia. Minha mãe é sobrevivente. Falar do tema da chacina é muito profundo para mim e nunca vou esquecer até o fim da minha vida, porque quando eu lembro da chacina faço valer o testemunho das minhas próprias famílias. Alguns estão, outros já se foram. Valorizo muitíssimo porque é meu próprio sangue, então fui recuperar um pedaço de terra que estava muito proibido para nós, mas mesmo assim eu fui. Senti muita dor quando ouvi os testemunhos, quando comecei a trabalhar com a Federação de Comunidades Indígenas do Povo Pilagá (organização com pessoa jurídica). Por meio dos testemunhos dos meus familiares, alguns não estão mais aqui, mas por meio desses testemunhos senti profundamente que devia ir para o lugar onde a gente nasceu. Aquele lugar estava proibido para nós. Demorei quatro anos para voltar porque não é só querer voltar, precisa também de água. A gente foi, se instalou e fez a comunidade nova onde está minha família. Todos os anos, uma ou duas vezes ao ano, a gente vai ao cemitério dos nossos familiares, o que sobrou dele. Quando saio de lá ou quando entro, primeiro começo a chorar porque sinto a presença dos meus familiares que foram atacados. Por meio deste testemunho da chacina valorizo a memória dos meus tios, das minhas tias e dos meus avôs.
 
Você pode nos contar sobre seu filho Timoteo?
 
No fim das contas, tive que viver uma grande tragédia porque mataram meu filho e foi de propósito. Timoteo foi o capitão da juventude pilagá. Ele não se importava se alguém falasse mal dele, ele sempre respondia, sempre tinha vontade de brincar e juntar os jovens. Ele se dava bem com todo mundo, tinha amigos mestiços, tinha amigos wichí. Ele soube conviver porque tinha uma concubina wichí. Ontem quando eu estava viajando por Rosario lembrei do meu filho e chorei muito. Estou engolindo a amargura. Mas só o Senhor toma conta, a vingança provém de Deus. Comecei a ler minha Bíblia no ônibus, não sei como está a situação do julgamento do caso do meu filho. Não podia suportar o que estava pensando, mas sei que por meio do Parlamento vamos chegar a um acordo. Me senti forte ao encontrar as outras irmãs e hoje amanheci rezando de novo para que o Senhor guie a gente. É algo muito insuportável para as outras mulheres, mas sempre rezo e peço para o Senhor me guiar porque a chacina que aconteceu foi uma tragédia, foi feita de propósito. Mas eu não quero me sentir fraca nem vazia, através da voz das mulheres em vários países, acho que vamos conseguir uma entrada favorável para nossas próprias comunidades, porque eu não sou a única que tem passado por tempos difíceis.
 
Eu sei que muitas mulheres temos passado por situações difíceis, mas tem que ter muita paciência e pedir pro Senhor nos guiar, nos dar mais inteligência e pensar mais amplamente, colher, trocar as ideias porque às vezes a gente se sente só estando na nossa própria comunidade. Sentimos que somos negligenciadas porque não temos dinheiro, porque não podemos entrar na Justiça. No tribunal ninguém escuta a gente, é pior se você fala menos, nem perguntam nem olham para você, essa é a tristeza das mulheres pilagá. Ás vezes fico forte, outras fico fraca. As coisas pelas que estou passando, pensando na chacina, não consigo esquecer. Por mais que não tenhamos resposta do julgamento, sobre como está sendo liderado, algum dia vamos conseguir uma resposta favorável para a comunidade.
 
Temos sempre presente o passado, o presente. As memórias estão muito frescas. Todos os dias, todas as noites, conversamos, nos reunimos, conversamos com nossos netos. O dia de amanhã, se eu não estiver mais aqui, vão falar pros seus próprios filhos, pros seus próprios netos sobre a comunidade. Eles sabem que neste lugar aconteceu a chacina, que temos perdido muitos animais, muita terra e agora estamos muito intoxicados. Onde eu moro não tem água, não tem rio. Temos graves problemas por causa da soja. No mês de janeiro sentimos um cheiro muito ruim, o vento, como se fosse um banheiro podre. Durou uma semana aquele cheiro, a chácara estava muito podre, muitos venenos, muitos químicos. Eu sei porque moro muito perto. O solo está muito poluído, não temos atendimento médico. Não temos educação, não temos professora infantil, nem professor para que os meninos concluam seus estudos.  
 
Como continuou o caso de seu filho Timoteo?
 
Minha advogada me entregou o número do expediente de Timoteo e agora está na igreja. Eles estão rezando para que possam conseguir alguma coisa porque Timoteo era um menino muito estudioso, era estudante e não tem preço. Ele juntava à juventude, visitava sua comunidade e saio como a chacina do ano 1947 porque comparamos com essa história. Mas Timoteo era um menino muito simples, muito gentil como os avôs que são testemunhas da chacina. Eles também vêm falar na comunidade para que o povo se junte e se junte com força. Acho que ele puxou para os avôs, que são testemunhas da chacina. Perder um filho sadio é algo difícil de esquecer, afeta tudo, parte da saúde, te adoece, muito desespero, muitos nervos.
 
O que aconteceu com ele exatamente?
 
Sofreu um acidente, ele vinha de moto. Ele organizou um jogo de futebol no loteamento 27, no sábado foi para La Bomba, no domingo foi para o futebol e foi aí que aconteceu a tragédia. Foi aí que acabou. Resistiu mais ou menos 11 dias. Sofreu o acidente em 6 de abril e os enfermeiros não fizeram nada porque era um menino muito sadio, nunca teve tratamento. Faleceu em 16 de abril.
 
De onde são seu pai e sua mãe?
 
Meu pai era um mestiço mas quem me criou foi minha mãe, minha avó e meus tios que já não estão. Então eu me sinto muito feliz por não esquecer minha própria cultura, minha língua e às vezes vejo as irmãs que parecem brancas no seu jeito de vestir, no seu jeito de falar; me impressiona muito porque lá não existe esse jeito. As mulheres, na sua maioria, falamos em nosso dialeto, comemos nossa comida e comemos comida do mundo branco, algumas não, não somos todas.
 
Por que bloquearam a estrada? Como foi?
 
Sim, em 2016 bloqueamos a estrada, não lembro do mês. Um mês de novembro, outubro, quase nos últimos dias de outubro e chegando nos últimos dias de novembro. Bloqueamos a estrada porque estávamos pedindo que viesse um professor para ensinar as crianças, para nos dar aula e pedindo a pessoa jurídica para a comunidade Penqolé. Fomos e bloqueamos a estrada e veio o intendente para levantar o bloqueio.
 
[Desde esse dia Juana está judicializada pelo bloqueio de estrada realizado, causa que hoje está prestes a ser levada para julgamento oral.]
 
Natalia Colazo
Cestos elaborados por mujeres Pilagá. Fotografía: Natalia Colazo.
 
Depois da gendarmaria invadir em outubro de 1947, todos foram embora, e você, Juana, foi a primeira que decidiu voltar, em 29 de abril…
 
Sim, decidimos isso porque as famílias do meu marido estiveram lá, mas com o passar dos anos a gendarmaria voltou, houve pressão e as famílias fugiram de novo. Eu fiquei com três famílias, mas continuo estando lá. Lembro que aqueles dias foram muito difíceis e complexos. Eu pedia pro Senhor me acompanhar. Embora eu esteja sozinha, continuo firme, forte, no fim vivi a tragédia da morte do meu filho, não acreditava no que ia acontecer comigo, mas tive um sonho e nele eu vi que vinha uma maldição. Primeiro adoeci, depois, quando me recuperei, mataram meu filho de propósito. Tudo foi uma maldição para mim, mas eu continuo aqui. Sempre fecho o terreno, asseguro ele, ganhe quem ganhar, pelo sangue que foi derramado neste lugar, jamais ninguém vai me tirar daqui.
 
Me instalei, fechei o terreno, chegaram os guardas e falaram que iam me tirar, que devo assinar um papel para tirar às pessoas nas estradas 81 e 28. “Não, eu não vou assinar nenhum pedaço de papel porque vocês são os mesmos inimigos nossos”. Quando nosso defensor estiver aqui e ler esse papel, então eu assino, sem ele aqui não posso assinar. Os guardas amoleceram e nunca mais voltaram graças a Deus. Querem me levar no esquadrão, se eu não quiser ir, vão levar minhas duas filhas. Como são bem novas, escolhe a mais jovem. Inacreditável. Eles foram, me ameaçaram, tocaram uma das minhas meninas, tocavam o cabelo, porque tinha o cabelo comprido.
 
Voltando à chacina de 47...
 
É verdade o que aconteceu no ano 47, a história dos guardas nunca muda, então quando minhas filhas iam no fundamental 2, que ficava a 12 quilómetros, iam e voltavam a pé. Quando elas têm medo à noite não podem ir pra costa da pampa. Por volta das seis e meia ou sete da noite, os guardas estão esperando na ponta da estrada e querem pegar minhas filhas, uma vez minhas filhas fugiram e entraram no mato com as mochilas. Os meninos continuaram caminhando. Timoteo ia também, um guarda chegou e falou para ele: “para, menino”. Se vocês quiserem revistar ele, revistem, falou, e o revistaram. Bom, anda logo porque por aqui ninguém pode circular. “Por acaso sou um traficante de droga?”, respondeu Timoteo, “não façam isso comigo”, falava meu filho. “Por que falam comigo desse jeito que eu não gosto porque vocês são os inimigos dos meus ancestrais?” falava. Depois disso, nunca mais revistaram a mochila dele.
 
“Se me tirarem daqui, quem responde minha pergunta sobre se vocês são os mesmos guardas inimigos nossos? bom vocês me darem um terreno privado, com título, com chave, todas as casas”, um dia ameacei um guarda e jamais me incomodaram de novo. Nenhum governo está pagando esta causa. Eu venho a recuperar o pouco que restou. Depois voltaram, querem que doe para eles 100 ou 200 hectáreas para aviação ou radar sei lá. Foi isso que eles me falaram, mas eu não aceitei porque não tenho pessoa jurídica, título, não vou aceitar o negócio que me propõem porque quero consultar com meus familiares para ver se eles falam sim ou não e falaram que não. A terra é nossa e pronto, instalamos, fechamos. Chega. Me instalei e pronto.
 
Leandro Rodríguez

“Sin Nosotras No Hay Pais” Fotografía: Leandro Rodríguez

O Parlamento onde aconteceu a entrevista foi fundamental para a construção da Campanha “Nos queremos Plurinacional”, promovida pelo Movimento de Mulheres Indígenas pelo Bem Viver, que busca que o Encontro Nacional de Mulheres mude seu caráter “Nacional” para “Plurinacional”. Esta mudança significaria que as mulheres indígenas se tornassem sujeitas políticas, protagonistas e que sua participação no Encontro Nacional de Mulheres seja transversal. Diante dos genocídios históricos e da invisibilização das populações indígenas pela nação argentina, esta campanha se torna urgente para combater o racismo e propor o Bem Viver como direito. É uma dívida histórica  das lutas feministas, como coloca o Movimento de Mulheres Originárias pelo Bem Viver: “pela livre determinação dos corpos, pela livre determinação dos territórios e pela livre determinação dos povos”.


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