'Lei do Marco Temporal' pode repetir graves violações de direitos dos povos indígenas; entenda
Foto: UN Women/Flickr (CC BY-NC-ND 2.0)
Às vésperas da sessão que pode definir o futuro da demarcação de Terras Indígenas no Brasil, relembre casos dramáticos de deslocamentos e contatos forçados provocados por políticas que o Congresso quer reeditar
Casas incendiadas. Epidemias mortais. Pessoas indígenas perseguidas e caçadas. Terras Indígenas loteadas para empresas agropecuárias. Comunidades inteiras levadas em caminhões, a quilômetros de seus territórios. Essas são apenas algumas das graves violações de direitos humanos sofridas pelos povos indígenas no Brasil graças a políticas como as que a 'Lei do Marco Temporal' (14.701/2023) quer reeditar.
Às vésperas da sessão no Congresso Nacional em que os legisladores vão definir se acatam ou não os vetos do presidente Lula à 'Lei do Marco Temporal', pesquisadores do Instituto Socioambiental (ISA) produziram dois mapas interativos para relembrar dez trágicos casos de deslocamentos e 12 casos de contatos forçados com povos indígenas.
Os mapas foram produzidos a partir de documentos do acervo do ISA e dos verbetes da Enciclopédia Povos Indígenas no Brasil, que relembram o violento histórico do contato vivido por muitos povos indígenas. Outro subsídio foi o relatório final da Comissão Nacional da Verdade (CNV), que investigou as graves violações sofridas por povos indígenas e comprovou que a política indigenista anterior à Constituição de 1988 vitimou pelo menos 8.350 pessoas indígenas – crimes reconhecidos pelo Estado brasileiro somente em 2014.
Sem os vetos, além de manter a tese do 'Marco Temporal', que restringe o direito dos povos indígenas às terras que ocupavam na data da promulgação da Constituição, 5 de outubro de 1988, a Lei também pode implementar o contato forçado com povos indígenas isolados; a permanência de invasores em Terras Indígenas; a autorização para o agronegócio explorar Terras Indígenas, inclusive com transgênicos; e a anulação de reservas indígenas.
Para a derrubada dos vetos no Congresso, será necessário alcançar maioria absoluta – ao menos 257 votos dos deputados e 41 dos senadores. Entretanto, a redação anterior do Projeto de Lei (PL 2.603/2022) já havia sido aprovada com 283 votos favoráveis na Câmara e 43 no Senado. Dessa forma, caso haja a derrubada dos vetos, a lei passa a valer, mas ainda poderá ser questionada na Suprema Corte.
Risco iminente: contato forçado com povos indígenas isolados
O presidente Lula vetou no dia 21 de novembro integralmente o Artigo 28 da lei, que permitia o contato forçado com povos isolados. No artigo vetado, sob a justificativa de “interesse público”, se estabelecia o fim à política de não contato com indígenas isolados, criada em 1987 para garantir a esses povos o direito ao isolamento e ao território, com contatos estabelecidos apenas em situações extraordinárias, de riscos à saúde e integridade física, ou em casos em que a aproximação seja feita pelo próprio grupo.
Agora, o Congresso Federal pode decidir pela reinserção desse artigo na Lei, desconsiderando o direito à autodeterminação dos povos e revivendo a desastrosa política de integração compulsória – que já causou a morte de milhares de indígenas e o extermínio de povos inteiros, como mostra o mapa com 12 casos de contatos forçados com povos indígenas.
Casos como o do povo Akuntsu, em Rondônia, expõem o histórico de violências brutais que levaram praticamente à dizimação de um povo até então isolado. Atualmente, os Akuntsu, após diversos massacres perpetrados por fazendeiros, madeireiros e grileiros, tiveram sua população reduzida a apenas quatro sobreviventes.
Já o povo Rikbaktsá, que também tem sua história de contato forçado revelada no mapa interativo, enfrentou um processo de “pacificação” que levou à morte 75% de sua população por doenças epidêmicas e outras violências.
Para o antropólogo Tiago Moreira dos Santos, do programa Povos Indígenas no Brasil do ISA, caso a Lei venha ser aprovada sem os vetos, essa política pode voltar a dizimar povos inteiros: “A abertura para situações de contato forçado com povos isolados representa uma grave ameaça à integridade física e cultural desses povos. Os exemplos históricos são nítidos a respeito do que pode acontecer: genocídio, reduções populacionais drásticas, morte de culturas e línguas e muito sofrimento pra essas populações”.
O mesmo foi pontuado pelo presidente Lula em despacho que acompanhou a publicação da lei no Diário Oficial da União: “Este dispositivo converte a política de não contato em uma política de contatos forçados com os indígenas isolados 'para intermediar ação estatal de utilidade pública', hipótese inédita e demasiadamente ampla que pode gerar ameaças aos povos indígenas em isolamento”.
Remoções forçadas liberaram territórios para colonização e obras de infraestrutura
Já o Artigo 4 da Lei revive a tese do 'Marco Temporal' – que foi vetada pelo presidente Lula. Esse artigo quer condicionar o direito dos povos indígenas apenas às terras que ocupavam na data da promulgação da Constituição, salvo em casos de conflito possessório que deve ser comprovado pelas comunidades.
O artigo, além de ir contra o que já foi decidido pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em 27 de setembro de 2023, que garantiu a proteção constitucional aos direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, independentemente de um marco temporal, ignora o extenso histórico de expulsões e deslocamentos forçados sofridos pelos povos indígenas, graças a políticas que, no passado, subordinaram os direitos indígenas aos planos governamentais e empresariais, legitimando o esbulho das Terras Indígenas.
Segundo a CNV esse era o objetivo da política indigenista do estado entre 1946 a 1988: “Se estabelece na prática uma política que, ao invés de proteger os ‘usos, costumes e tradições’ indígenas, atua diretamente para alterá-los sempre que se julga que se apresentam como um ‘empecilho’ ao projeto político do governo”.
Um dos exemplos destacados no mapa que traz dez casos de deslocamentos forçados de povos indígenas, e demonstra os riscos da aprovação da tese, é do povo Avá-Canoeiro do Araguaia.
Autodenominado Ãwa, esse povo se refugiava do assédio de fazendeiros na Mata Azul quando teve um de seus grupos brutalmente rendido por agentes de uma Frente de Atração da Funai e, posteriormente, foi transferido à força para a terra dos Javaé. Na ocasião, seis indígenas foram capturados – dois homens, uma mulher e três crianças –, aprisionados em jaula a céu aberto e expostos à visitação pública na Fazenda Canuanã. Hoje, os Avá-Canoeiro do Araguaia têm uma população de apenas 38 pessoas e vivem exilados em terras alheias, enquanto lutam pela demarcação da TI Taego Ãwa e pela justa reparação pelas violações sofridas.
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