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News & Events Por que a reforma agrária continua importante
Por que a reforma agrária continua importante
Por que a reforma agrária continua importante
A demanda vai além das famílias que orbitam em torno do MST
A demanda vai além das famílias que orbitam em torno do MST

 

Gustavo Noronha - Economista do Incra

Estudo da Oxfam aponta o aumento da concentração de terras no Brasil, que nunca levou a cabo uma distribuição efetiva das áreas rurais

Está na moda entre os setores ligados aos ruralistas dizer que a reforma agrária teria fracassado, como se o País tivesse realizado uma em algum momento de sua história. Relatório da ONG Oxfam, especialista em estudos sobre a desigualdade, confirma que o índice Gini de concentração da terra não se reduziu nos últimos anos, ao contrário. A concentração da terra aumentou, de acordo com dados do censo agropecuário do IBGE de 2006. Inventamos, caso único no mundo, a reforma agrária perene.

Os dados do censo também apontam um contingente de 809.811 produtores rurais sem terra e 1,049 milhão de produtores com minifúndios inferiores a dois hectares. Muito além do público ligado aos movimentos sociais, estimado em pouco mais de cem mil famílias acampadas, essa é a demanda existente. Por outro lado, menos de 1% dos estabelecimentos concentram 45% de toda a área rural.

Uma das afirmações recorrentes de quem critica a reforma agrária brasileira é a de que teríamos realizado o maior programa de distribuição de terras do mundo: 88 milhões de hectares distribuídos em assentamentos. Ignoram propositalmente que a maior parte está situado na Amazônia Legal, em áreas que, apesar de formalmente incorporadas pelo Incra como reformadas, não passam de reconhecimento e titulação de populações tradicionais que viviam na região ou assentamento de famílias em terras públicas. Políticas fundamentais de inclusão de um segmento marginalizado, mas que não podem ser chamadas de reforma agrária.

Outro argumento recorrente dos críticos é que a reforma não teria resolvido o problema da miséria no campo, função desempenhada pelo agronegócio. Primeiro ponto: as famílias beneficiárias do Programa Nacional de Reforma Agrária estão hoje em melhor situação do que estariam se não fossem assentadas.

Os próprios dados da auditoria do Tribunal de Contas da União que tiveram ampla repercussão ao colocar sob suspeita quase 500 mil beneficiários do Incra, se analisados com cuidado, indicam um sucesso da política pública executada pela autarquia ao longo dos seus pouco mais de 46 anos.

Na realidade, menos de 10% dos beneficiários estavam em situação de possível irregularidade. Os demais passaram a se enquadrar em critérios que os tornariam inelegíveis atualmente para o programa, justamente devido ao sucesso deste: são cidadãos que regularmente assentadas vieram a tornar-se servidores públicos, passaram exercer função pública (como mandatos eletivos ou cargos em administrações públicas municipais, estaduais ou mesmo federal), viraram proprietários, cotistas ou acionistas de empresa ou de cooperativas, ou, ainda, passaram a apresentar sinais exteriores de riqueza.

Ainda assim, os casos em que os assentamentos rurais possam não ter sido bem-sucedidos nos remetem ao que afirmava Caio Prado Júnior na década de 1960. O grande intelectual brasileiro nos lembrava que as manchas de solo de pior qualidade são aquelas que acabam na mão dos pequenos e médios proprietários e que a desapropriação apenas das grandes propriedades improdutivas perpetuaria este cenário.

De certa forma, a discussão sobre a função social da propriedade só tem retrocedido nos últimos 30 anos. Até a Constituição de 1988, era possível a desapropriação do latifúndio por extensão. Após sua promulgação, via artigo 185, a propriedade produtiva passou a ser insuscetível de desapropriação para fins de reforma agrária.

O artigo 186 menciona especificamente que a função social da propriedade é cumprida por meio de: aproveitamento racional e adequado, utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente, observância das disposições que regulam as relações de trabalho e da exploração que favoreça o bem estar dos proprietários e dos trabalhadores. A contradição com o artigo 185 faz, entretanto, com que em geral apenas as propriedades improdutivas sejam destinadas à reforma. Fica desta forma travado o debate sobre desapropriações que não cumpram sua função social sob os aspectos ambientais, trabalhistas e de bem estar.

Apesar de aprovada a emenda constitucional que determina a expropriação de terras flagradas com trabalho escravo, o Congresso, hegemonizado pela bancada ruralista, não permitiu o avanço do tema com sua regulamentação por lei específica. A degradação ambiental, os recorrentes débitos trabalhistas ou condições de trabalho em completo desacordo com o bem estar do trabalhador não ensejam a desapropriação-sanção.

Até mesmo a questão da produtividade continua engessada no tempo. Apesar de todos os avanços do agronegócio, com sua propalada eficiência e progresso técnico ocorrido nos últimos 40 anos, os ruralistas não aceitam a revisão dos índices de produtividade baseados no censo agropecuário de 1975.

Outro ponto que sequer entra no debate das desapropriações, apesar de relacionado tanto com a questão ambiental quanto com o bem estar dos trabalhadores, é o debate do uso de agrotóxicos. O Brasil é o maior consumidor de defensivos do mundo, provocando danos à saúde (dos trabalhadores e dos consumidores) e ao meio ambiente. Para se ter uma ideia da dimensão do problema, os custos externos do uso de agrotóxicos num país de área agrícola reduzida como o Reino Unido chegam a  2,34 bilhões de libras (aproximadamente 9 bilhões de reais). Imagine no Brasil.

Enquanto isso, os latifundiários seguem como um dos principais devedores da União. Temos mais de 4 mil cidadãos e empresas proprietárias de terras com dívidas acima de 50 milhões de reais. Entre os 50 maiores devedores, encontramos ao menos 11 ligados ao setor agropecuário, todos com dívida individual superior a 1,48 bilhão de reais.

Nesta situação, ainda temos uma diminuição sistemática do orçamento do Incra desde o primeiro governo de Dilma Rousseff, chegando ao seu piso histórico de queda em 2016. O golpe trouxe ainda como novidade uma mudança de atuação da autarquia, com inflexão para uma prioridade da titulação, uma política importante, mas que não é reforma agrária, das áreas reformadas em detrimento da obtenção de novos terrenos. A Medida Provisória 759 também previu a possibilidade da regularização da reconcentração fundiária ocorrida irregularmente até dezembro de 2014 em assentamentos do Incra.

De nada vai adiantar o desejo do agronegócio de que enterremos a reforma agrária. Esta pauta continuará na ordem do dia até porque não há país no mundo que tenha se desenvolvido sem uma mudança radical na sua estrutura fundiária. Resta saber se será na lei ou na marra.