Os índios ainda são invisíveis (Brasil) | Land Portal

 

Autora: Tatiana Mendonça

Aquela vida de trabalhar na roça e casar cedo não era para ela. Sônia ainda era adolescente quando decidiu que ia deixar sua aldeia no Maranhão para estudar. Seus pais não queriam deixar, mas acabaram cedendo ao desejo da menina. Fez o ensino médio, tornou-se técnica de enfermagem e depois resolveu cursar faculdade de letras. Foi a primeira a ter ensino superior entre os guajajaras. Não satisfeita, fez ainda pós-graduação em educação especial pela Universidade Estadual do Maranhão. O percurso acadêmico não a afastou das suas origens. Soube, desde sempre, que sua missão era trabalhar pelo coletivo. Ainda estava na universidade quando começou a atuar como secretária numa organização indígena do seu estado. Os líderes eram sempre homens e a procuravam para que ajudasse como secretária, relatando  encontros e reuniões. “Era a boazinha ali para fazer as coisas para eles...”. Mas Sônia queria mesmo era ser protagonista. Foi vencendo resistências até tornar-se coordenadora da  Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e uma das principais lideranças indígenas do Brasil. À frente da Apib, ela viaja o mundo para falar do desrespeito aos direitos dos “povos originários”. Em meados de março, a ativista esteve em Salvador participando de um evento da Coordenadora Ecumênica de Serviço (Cese) cujo tema era bem direto: “Democracia e direitos sob ataque – um olhar dos movimentos sociais”. Como já se pode imaginar, Sônia Bone Guajajara, 43, acredita que o governo Temer agudizou os problemas enfrentados pelos indígenas e atua para barrar os processos de demarcação de terras.

O novo ministro da Justiça, Osmar Serraglio, declarou recentemente que terra “não enche a barriga de ninguém” e que o importante é que indígenas tenham “boas condições de vida”.  Como a senhora analisa essa fala?

Essa declaração mostra a ignorância dele sobre a questão indígena. Deveria saber que os indígenas têm um modo de vida que depende da garantia territorial, como prevê a Constituição. Sem a terra, é impossível. Isso mostra o tamanho do desrespeito dele para com a cultura, a tradição dos povos originários. 

Em novembro passado, a Casa Civil da Presidência devolveu à Funai 13 processos de demarcação de terras indígenas que aguardavam homologação presidencial. No governo Dilma, poucas áreas foram demarcadas. Nesse sentido, o cenário de garantias dos direitos indígenas piorou no governo Temer ou manteve-se igualmente desfavorável?

O cenário se complicou mais ainda. Antes já estava difícil, já estava tudo paralisado, mas agora há uma decisão política do governo e uma aliança forte entre o Executivo, o Legislativo e até o Judiciário. No Legislativo há mais de 180 medidas anti-indígenas que visam retroceder ou suprimir direitos. Dessas, 19 dizem respeito diretamente à flexibilização do licenciamento ambiental, para facilitar a implantação de hidrelétricas, para expansão do agronegócio, da pecuária... Ou seja, facilitar o acesso deles aos territórios indígenas. E no Executivo eles tentam viabilizar essas intenções por meio de portarias e decretos. No início deste ano, houve uma portaria do Ministério da Justiça, a 68, que nós conseguimos derrubar, mas logo em seguida foi editada outra portaria, a 80, que tem praticamente o mesmo teor. Essa portaria cria um grupo de trabalho (GT) para identificar as terras indígenas, papel que hoje é da Funai. Esse GT está vigente, está valendo. Com isso, eles tentam de certa forma concretizar a PEC 215, que está parada no Congresso por pressão nossa, por pressão internacional [a PEC previa transferir ao Congresso a decisão final sobre a demarcação de terras indígenas e territórios quilombolas]. Esse GT desconsidera todo o parecer antropológico da Funai. Então a intenção é mesmo suspender todo e qualquer tipo de demarcação de terra. E no Judiciário, que a gente sempre viu como aliado, há hoje essa interpretação de que só pode ser considerada terra indígena aquela em que se comprovar a presença indígena até o dia 5 de outubro de 1988 [data de promulgação da Constituição]. Com isso, o STF está desconsiderando o território tradicionalmente ocupado. Muitos foram expulsos por conflitos com os invasores.

Mesmo com todas essas dificuldades, as demarcações na Amazônia aconteceram com mais celeridade que em outras regiões do país, como o Nordeste. Por que isso acontece?

Hoje, 13% do território nacional já é terra indígena, regularizada. Desses, a maioria – tem gente que fala em mais de 90% – está na Amazônia, de fato. As demais regiões têm ainda um passivo muito grande. Aqui na Bahia, os indígenas vivem em constante luta pela retomada dos seus territórios tradicionais. No Centro-Oeste, no Sudeste, é a mesma coisa. Os fazendeiros jogam a responsabilidade para o estado, que não quer assumir as indenizações, até porque há aí os interesses da bancada ruralista, que é forte, então essa situação não consegue ser resolvida. Esses políticos gostam de dizer que nessas regiões só há ‘índios genéricos’... Constroem todo tipo de argumento para inviabilizar as demarcações. Na Amazônia, a gente teve esse avanço muito por conta da pressão mundial pela preservação da floresta, que é a mais diversa do mundo. Não foi só por interesse do governo brasileiro... E mesmo essas terras regularizadas sofrem muita pressão e invasão de madeireiros, mineradoras, o que acaba gerando muitos conflitos. 

As pessoas fazem pouco essa ligação de que as demarcações de territórios indígenas acabam contribuindo para a preservação dessas áreas.

Sim, é verdade. Poucos têm essa consciência. Esses territórios não só proporcionam a manutenção do modo de vida indígena como também proporcionam o equilíbrio ambiental, climático, o regime de chuvas, preservam as nascentes, a qualidade do ar... Tudo isso é protegido com nosso próprio modo natural de viver. E o benefício não fica só para nós, fica para todo mundo. Isso garante a vida no planeta. Se não fossem os territórios indígenas, o Brasil já seria um verdadeiro deserto. 

A senhora está sempre em Brasília dialogando com os parlamentares no Congresso. Quão sensíveis eles são à causa indígena?

É um cenário muito hostil. Dos 513 deputados, não somam 20 com a gente. Desses, tem oito ou 10 que estão ali mais diretamente, são os que a gente pode contar com a ajuda. Temos quatro frentes de atuação: 1. fazemos articulação com as entidades de apoio, nacionais e internacionais; 2. temos articulação com os assessores dos parlamentares, para que eles mandem para a gente o que está rolando; 3. quando vemos que é algo grave, fazemos mobilizações; 4. fazemos nossos rituais de pajelança, cantos, dança, que têm dado uma força grande para a gente continuar nessa frente de resistência. E acho que, mesmo com esse pouquinho de parlamentar que tem lá com a gente e com esse tanto contra nós, acho que estamos conseguindo travar muitas medidas, como a PEC 215, que já era para estar em vigor se não fossem nossas mobilizações. E aí também viajo para fora, são muitas atividades internacionais. Já fui fazer denúncias na sede da ONU, em Nova York, na sede do Conselho de Direitos Humanos,  em Genebra... É uma agenda intensa.  

Ia te perguntar onde a senhora mora, mas parece que é no avião...

Essa é a pergunta mais difícil de te responder. Tenho minha casa lá em Imperatriz, no Maranhão, onde meus filhos ficam com minha família. No começo foi complicado, porque eles não entendiam o que eu fazia. Não era nem uma questão de aceitar, mas de entender.  Meu pai dizia: ‘Que trabalho é esse, Soninha, que não para em casa?’. E minha filha falava: ‘Mãe, o que é mesmo que a senhora sabe fazer? Só vejo a senhora conversando, fazendo reunião, sentada no computador...’ (risos).

A senhora é a coordenadora da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib). Acredito que a mulher não ocupe um lugar de liderança nas aldeias, não é? Que tipo de resistências a senhora enfrentou nesse processo?

Nas culturas indígenas, não é muito comum mesmo as mulheres assumirem esse protagonismo para fora. Assumem muito internamente. Aí elas têm um papel fundamental, sabe, de dizer, de dar comando. Mas muitos povos não permitem que elas estejam publicamente à frente das decisões. Uma ou outra mulher consegue se sobressair e dar um passo à frente. Para mim, no início, enfrentei não resistência, mas os caciques, as lideranças masculinas, sempre viam as mulheres num papel mais secundário, como secretárias. Quando eu comecei era muito isso. Eles me levavam para fazer os relatórios, para escrever. Ao longo do tempo, fui ganhando confiança e credibilidade junto às lideranças. E aí fui assumindo cada vez mais esse papel de protagonista. Da associação do meu estado, fui para uma associação de toda a Amazônia brasileira, a Coiab, e lá fui convidada para ir para a coordenação, mas ainda como secretária. Era a boazinha ali para fazer as coisas para eles... Mas aí a gente se juntou, as mulheres, e elas me falaram que eu tinha toda condição de concorrer para coordenadora-geral e que primeiro, para não afrontar os meninos, eu devia sair como vice.  E aí eu fui para cima. Eles relutaram, resistiram, porque já tinha outros candidatos a vice, e eu disse ‘então vamos fazer a votação na assembleia’. Concorri com duas lideranças, dois homens, e foi uma votação esmagadora. Os votos dos dois [somados] não deu nem a metade dos meus. Daí já fui pra o mundo. Em 2009 assumi a coordenação geral  da Coiab e em 2013 fui eleita para a coordenação executiva da Apib. Hoje sinto que há uma confiança no meu trabalho. Sempre tive como  missão trabalhar pelo coletivo. É algo que escutei de todas as lideranças, dos mais velhos, que nós, povos indígenas, temos que viver em coletividade. É um dos princípios fundamentais da nossa identidade. Não consigo ser sozinha em nenhum lugar, nem em casa. 

Como a Apib enfrenta problemas mais cotidianos da vida nas aldeias, como o crescente alcoolismo entre os indígenas e a ausência de escolas bilíngues para as crianças?

Hoje, pela aproximação das cidades com as aldeias, várias coisas vêm interferindo  no cotidiano dos indígenas. Como é uma coisa que vem de fora para dentro, essa coisa do alcoolismo, os indígenas não sabem lidar com isso e acabam sofrendo muito. Parece que eles têm menos resistência ao álcool, e isso faz com que fiquem muito vulneráveis. Cada povo lida com a questão de um jeito, mas é uma preocupação grande buscar uma forma de minimizar essa situação. Sobre as escolas, a educação ainda é muito fragilizada também. Embora haja a lei que garanta o professor bilíngue, que trabalhe a língua materna, isso ainda é algo muito incipiente. No Maranhão, faltam professores, não há oferta regular de merenda... É uma situação muito instável em relação a tudo.  

Por que, na sua opinião, o movimento indígena não se fortaleceu no Brasil, a exemplo do que ocorreu com os movimentos negro e feminista?

De fato, embora sejamos povos originários,  a gente ainda é muito invisível e ignorado não só pelo poder público como pela própria população. A população é muito desinformada em relação à presença e à cultura dos povos indígenas. A gente ainda ouve muitas perguntas assim: ‘Ah, ainda tem índio aqui no Brasil?’. E nos últimos anos, além do desconhecimento, houve um aumento muito grande do racismo, do preconceito. Vários indígenas estão enfrentando racismo dentro da universidade, nas redes sociais. A gente atribui isso também aos próprios discursos de pessoas públicas, principalmente  políticos, que a todo momento dizem que os indígenas estão tomando terras, são preguiçosos, bêbados. Exemplo disso é Roraima, que eles tentam a qualquer custo dizer que depois da demarcação da Reserva Raposa do Sol a situação dos indígenas piorou. No Mato Grosso do Sul dizem que os indígenas são invasores das terras, sendo que na verdade eles que estão sendo assassinado pelos invasores. Há essa inversão  de entendimento. 

A senhora foi vítima desse tipo de preconceito quando frequentou a universidade?

Não. Nessa época as pessoas viam a gente como o diferente, o exótico. Todo mundo queria agradar, conhecer, pegar... Fui a primeira da minha aldeia a fazer universidade, hoje tem muitos... Meus pais não queriam deixar eu sair para estudar. Aliás, para eu sair para fazer o ensino médio já foi sem eles deixarem. Eu ia fazer 15 anos... Até que meu pai disse: ‘Então vá, e quando quiser, volte’. Fui agarrada nessa palavrinha dele. Sempre tive a certeza de que não queria permanecer ali como todo mundo estava, indo para a roça, casando cedo... Eu via as meninas casando e dizia: não quero, eu vou-me embora estudar, viajar, ir a outros cantos... 

Li que em meio às suas atividades a senhora conheceu a modelo Gisele Bündchen. Como aconteceu esse encontro?

Ela me convidou para gravar um programa da National Geographic para falar sobre os impactos da pecuária na Amazônia. E aí conversou com várias pessoas, comigo, com José Serra [ex-ministro das Relações Exteriores]. Ela contou que quando terminou a entrevista com Serra, saiu chorando, porque sentiu uma energia muito ruim. E que quando terminou de falar comigo, chorou também, mas  de felicidade, porque viu uma esperança. Ela foi muito gentil, atenciosa. E eu falei que ela precisava se envolver mais, apoiar mais, porque a gente está aqui precisando muito de pessoas para dar visibilidade a essa causa. 

O escritor Daniel Munduruku disse certa vez, em entrevista à Muito, que as escolas tinham que abolir as comemorações pelo Dia do Índio, porque se limitavam ao folclore. A senhora concorda?

Não sou contra, sabe? Acho que tem que ser uma data melhor aproveitada. É a mesma coisa do Dia das Mulheres. Não é um dia para dar parabéns e florzinha, não é isso que a gente quer. É um dia de luta, de mobilização. E o Dia do Índio acho que é a mesma coisa. A gente precisa adentrar as escolas e mostrar os indígenas de hoje, mostrar como a gente luta, resiste. Os livros didáticos continuam mostrando os índios do passado. Tanto que os textos dizem: ‘Os índios eram assim, viviam assim...’. É tudo no passado. E a gente está aqui, presente, vivendo essa guerra constante. 

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